Doutores,
Sempre
é bom observar os ensinamentos do Professor Heleno Torres no que tange ao
Direito Tributário.
Confiram
o texto produzido pelo Doutor e publicado no Conjur sobre o quanto o nosso
atual sistema tributário barra o desenvolvimento econômico.
Abraço,
Sistema
de ICMS é o algoz do nosso desenvolvimento
Nelson
Rodrigues tem uma frase primorosa e que bem representa nossas circunstâncias: “O subdesenvolvimento
é uma obra de séculos.” Diante das variações de previsão do PIB para este ano,
projetado inicialmente para algo superior a 5%, e que nos chega agora próximo
de 1,5%, são muitas as causas concretas para esse debacle, e, dentre
outras, está a enorme dificuldade do convívio dos sistemas produtivo,
financeiro e mercantil com a nossa caótica realidade tributária. O desestímulo
e a falta de previsibilidade são as suas marcas.
A
dificuldade que persiste para iniciar empreendimentos, assegurar a continuidade
de investimentos e a completa ausência de previsibilidade sobre regras e
condutas administrativas tributárias, em conjunto, repercutem fortemente sobre
a economia. Perdemos espaço na ordem mundial por falta de uma reforma desse
sistema deteriorado, pela incompetência generalizada em oferecer estabilidade
na aplicação do Direito existente, além de confiabilidade, simplificação e
previsibilidade para o futuro da carga tributária, dos regimes de estímulos e
dos controles existentes. Nesse particular, os estados, com seus desastrosos sistemas
de ICMS, são verdadeiros algozes do nosso desenvolvimento.
Assim,
a insegurança jurídica coopera com a obra magnífica de não se acompanhar o
desenvolvimento econômico que se projeta. Ademais, no Brasil, os “fins”
(arrecadação a qualquer custo) justificam os “meios” (com adoção de qualquer
procedimento, qualquer argumento, qualquer forma). E o mais representativo
desse estado de coisas encontra-se nos modelos estaduais de multas excessivas,
tanto no quantitativo quanto nos motivos para sua cobrança. Não há razão para
tanta gravosidade generalista e desprovida de exame da conduta dos
contribuintes, como a boa fé, o erro escusável ou a falta de prejuízo ao
erário.
Não
seria exagero dizer que os estados, hoje, financiam-se mais com multas
desarrazoadas e vergonhosamente excessivas (como aquelas de 80% ou de 50% sobre
o valor da “operação”), juros de mora extorsivos (Selic adicionada de outros
percentuais), créditos não devolvidos e garantias desmedidas, do que com o
próprio tributo. Autuações a qualquer custo, ainda que descabidas, não importa.
Os fins justificam os meios.
Tomemos
aqui como demonstração desse modelo desvirtuado algo que não é exceção, mas
regra, do inferno gerado pelas atuações fundadas em controles sobre inscrição
estadual no Sintegra de compradores ou vendedores. Nestes, os contribuintes são
obrigados ao controle da situação ativa e regular das inscrições estaduais,
vedada a venda ou compra de mercadoria, pelas legislações estaduais, com quem
não esteja ativo e regular. Poderíamos falar ainda dos excessos nos controles
com operações “FOB” ou com os controles de notas canceladas, mas fiquemos
naquele.
O
leitor que pouco conheça como essas autuações operam, e as razões de nossas
críticas, poderá imaginar que efetuado o controle para realizar a venda ou a
compra (o que já é de discutível constitucionalidade), esgotar-se-ia o dever do
paciente contribuinte. Mas não. Os estados autuam até mesmo aquelas hipóteses
em que vendedor ou adquirente requer, sem qualquer conhecimento do
contribuinte, e nem precisaria, baixa retroativa de inscrição estadual.
Sim, eu sei que não se pode exigir de adquirentes de mercadorias que, ao tempo
dos fatos das operações, identificaram as inscrições como “ativas” e
“regulares”, que permaneçam, mês-a-mês, dia-a-dia, ad futurum, a buscar
saber se haverá n’algum momento, “baixa retroativa” das inscrições dos seus
clientes ou fornecedores.
As
obrigações acessórias ou deveres instrumentais têm função bem definida no
âmbito do Direito Tributário. Servem à finalidade de permitir a fiscalização e
arrecadação tributária. São instrumentos para que o Fisco acompanhe as
atividades que envolvam a realização de fatos imponíveis (fatos
geradores in concreto), a fim de garantir a arrecadação.
Ora,
a imposição de deveres instrumentais, assim como das respectivas sanções pelos
seus descumprimentos, deve estar em conformidade com os princípios
constitucionais, dentre outros, a legalidade, a segurança jurídica, o
não-confisco, a razoabilidade, a proporcionalidade e a moralidade
administrativa.
Esses
deveres instrumentais não podem ser desvirtuados pela Fiscalização a ponto de
as respectivas sanções (em geral, bastante onerosas ao contribuinte) serem
transformadas no objetivo precípuo da arrecadação, como modalidade
preponderante de receitas tributárias.
A
exigência do dever de verificar a regularidade das inscrições fiscais do
vendedor ou comprador de mercadorias, do nosso exemplo, deve prestar-se para
aferir a repercussão sobre possível impacto no controle de créditos ou de ICMS
devido.
Implica
violação ao princípio da segurança jurídica, da boa-fé, da confiança legítima e
da moralidade administrativa, a imposição de penalidade a contribuinte que
cumpriu sua obrigação acessória, ao confirmar o estado da inscrição estadual do
alienante na data da aquisição de mercadorias, ainda que se tenha verificado
posterior baixa da inscrição estadual com efeitos retroativos. Igualmente e com
maior razão, o adquirente de boa-fé, que pagou o ICMS devido nas etapas
anteriores, não pode ser responsabilizado por irregularidade decorrente da
baixa da inscrição estadual do alienante, com efeitos retroativos.
E
são tão frequentes esses atabalhoados exageros que o STJ já decidiu, em
múltiplas ocasiões, pelo afastamento dessas sanções, como exemplo: “À época da
transação, o comprador estava regularmente cadastrado e, se posteriormente foi
constatada irregularidade na sua constituição, não pode o vendedor, que
realizou a transação de boa-fé, emitindo nota fiscal de produtor para fazer
acompanhar a mercadoria, ser responsabilizado.”[1] Como se
depreende, o STJ afasta a responsabilidade tributária por infrações quando sua
aplicação tem como motivo irregularidade posterior da empresa controlada nas
suas informações fiscais, em atenção aos princípios de proteção da confiança e
da segurança jurídica. Assegura, pois, o limite do controle aos dados
disponíveis ao tempo da operação. [2]
E
como esses autos de infração “valiosos” passam a compor as contas de “passivo”
tributário estatal, toda a Administração Tributária assume sua defesa como ao
amparo de uma espécie de “princípio de salvabilidade (a qualquer custo) do auto
de infração”. Com isso, ainda que totalmente indevido, o contribuinte vê-se
aturdido por múltiplos mecanismos de garantia ou de “pressão fiscal”, como
perda do direito às certidões negativas, de contratação com a Administração
Pública, ameaças de condenações penais e outros. Tudo a levar o contribuinte ao
pagamento da exação, ainda que indevida.
Esses
supostos descumprimentos dos deveres instrumentais geram gravames que
contrariam frontalmente o princípio da proibição de excesso, com multas
exigidas com maior rigor que a própria obrigação tributária. É o caso da
incompreensível multa de 30% do valor da operação, do estado de São Paulo,
por qualquer tipo de descumprimento de obrigação acessória, que é mais onerosa
do que a multa devida pelo não pagamento do ICMS (80% sobre o tributo devido).
As
sanções pelo descumprimento de deveres instrumentais têm função repressiva e
sancionatória, para punir e desestimular a prática de atos evasivos, no
entanto, não podem servir como fonte de receitas tributárias, em substituição à
arrecadação dos impostos.
A
imposição de multas abusivas, sobretudo se decorrentes da inobservância de
deveres instrumentais, viola frontalmente os princípios administrativos da
razoabilidade e moralidade e do não-confisco. É chegado o tempo de revisão
integral desses excessos de multas. Em nenhum lugar do mundo persistem sanções
tão gravosas. São remanescentes dos tempos de inflação galopante e incontrolável.
Nos dias atuais, isso não mais se justifica.
O
artigo 112 do CTN, alinhado com os fundamentos constitucionais da pessoalidade
das sanções, estabelece que, em caso de dúvida, a lei tributária deverá ser
interpretada de modo favorável ao contribuinte, especialmente quanto à natureza
ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão de seus
efeitos (II) e à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação (IV),
ademais da capitulação legal do fato (I) e da autoria, imputabilidade, ou
punibilidade (III). Por conseguinte, a necessidade de identificar-se a natureza
ou extensão dos efeitos do fato ilícito, da graduação da penalidade aplicável,
da capitulação legal do fato ou da punibilidade vincula-se pelo artigo 112 do
CTN, que determina que lei tributária deverá ser interpretada de modo favorável
ao contribuinte. Não se diga, pois, que sempre há de prevalecer o artigo 136,
do CTN, quanto à objetividade das sanções.
A
atuação da Administração Tributária não pode desconsiderar a conduta de boa-fé
do contribuinte e deve seguir o preceito entabulado pelo artigo 112, do CTN,
norma geral vinculante para a aplicação da legislação tributária, além das
garantias constitucionais, como tem reiteradamente decidido o próprio STJ.
Tanto mais quando o contribuinte controla dados dos seus clientes ou
fornecedores em conformidade com as informações geradas por cadastro gerado e
alimentado pela própria Fazenda Pública, disponível ao tempo das operações, os
quais davam como ativas e regulares as inscrições estaduais.
De
outra banda, as divergências ou inconsistências de informações não podem gerar,
por si só, punições do contribuinte se este promove os atos necessários ao
pleno esclarecimento e nenhum prejuízo se evidencia para a Fazenda Pública.
A
vedação ao efeito de confisco em matéria tributária é princípio constitucional
que exige concretização, como o STF já assinalou nas mais diversas decisões nas
quais considerou sempre sua aplicação às multas, como exemplo:[3] “ICM.
Redução de multa de feição confiscatória. Tem o STF admitido a redução de multa
moratória imposta com base em lei, quando assume ela, pelo seu montante
desproporcionado, feição confiscatória. Dissidio de jurisprudência não
demonstrado. Recurso extraordinário não conhecido.”[4] Portanto,
a imposição de multa equivalente a 30% do valor da operação, quando não há
imposto a pagar e o respectivo descumprimento evidencia-se a partir de meros
erros escusáveis, que não trazem prejuízo ao Fisco, e mormente por fatos
futuros ao fato jurídico tributário da obrigação acessória, afronta os
princípios de proibição do excesso e daproporcionalidade, o que nos
dias atuais requer repúdio, pela vedação de se utilizar tributo efeito
de confisco, prevista no inciso IV, do artigo 150, da CF, o que se estende às multas.
Não
percebem, os insaciáveis fiscos estaduais e suas fiscalizações que assim
operam, o mal que geram para a ordem econômica, o desestímulo que isso promove
sobre os bons contribuintes que buscam, a duras penas, cumprir a miríade de
controles e obrigações acessórias transferidos, sem cerimônias, pela
Administração aos particulares.
Como
alude Klaus Tipke, “A insegurança institucional do Direito Tributário, a
insegurança no planejamento, a permanente mudança de condições prejudicam a
eficiência da economia nacional, sem que com isso se acrescente um único Cent à
receita fiscal”.[5] Diz ele,
com isso, que os tributos são o preço da proteção do Estado, para segurança
institucional, necessária para a economia, na medida em que a tributação é
participação na propriedade privada. A insegurança institucional da tributação
engendra insegurança na economia como um todo, ao mesmo tempo em que transmite
ao contribuinte a sensação de que a imposição se deixa arbitrariamente
manipular, sem critérios racionais.
O
Estado de Direito material requer justiça e, ao mesmo tempo, que a liberdade
seja respeitada pela tributação. Diga-se o mesmo quanto à realização concreta
dessa justiça, na determinação exata dos efeitos dos atos praticados pelos
contribuintes no cumprimento das suas obrigações acessórias. Destarte, à proibição
de excesso cabe a função de servir como bloqueio axiológico aos excessos
oriundos do arbítrio, da escolha do meio mais gravoso ou de qualquer lei ou ato
administrativo que supere os limites do suportável.Esse é o motivo pelo qual
sanções tributárias devem ser objeto de urgente reforma tributária, à luz dos
valores constitucionais. As autuações fiscais não podem deixar de observar a
boa-fé, a ausência de prejuízos ao erário e o exame da correção no cumprimento
das obrigações, numa praticabilidade coerente com os ditames da eficiência
da boa administração privada dos interesses fazendários (decorrência da
transferência de suas funções de controle).
[2] REsp 112.313/SP, Rel. Min.
Francisco Peçanha Martins, j. 16.11.1999, Segunda Turma, DJ17.12.1999.
REsp 122.553/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 16.11.2004, Segunda
Turma, DJ21.03.2005. REsp 175.204/SP, Rel. Min. José Delgado, j.
22.09.1998, Primeira Turma, DJ 23.11.1998. REsp 189.428/SP, Rel. Min. Humberto
Gomes de Barros, j. 09.11.1999, Primeira Turma, DJ17.12.1999. REsp
90.153/SP, Rel. Min. José Delgado, j. 26.11.1996, Primeira Turma, DJ 16.12.1996.
[3] AI 482281 AgR/SP, Ag.Reg. no
Agravo de Instrumento, Relator: Min. Ricardo Lewandowski, Julgamento:
30/06/2009. Órgão Julgador: Primeira Turma, DJe-157.
[4] RE 91707/MG, Recurso
Extraordinário, Relator: Min. Moreira Alves. Julgamento: 11/12/1979.
Órgão Julgador: Segunda Turma, DJ 29-02-1980. P. 975.
[5] TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito
tributário. Tradução de Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Fabris, 2008. v. 1,
p. 56;
Heleno
Taveira Torres é advogado, professor e livre-docente de Direito
Tributário da Faculdade de Direito da USP, e membro do Comitê Executivo da
International Fiscal Association.
Fonte:
Revista Consultor Jurídico, 31 de outubro de 2012
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