sexta-feira, 8 de junho de 2012

Artigo - Mitigação da inoponibilidade da exceção de contrato não cumprido nos contratos administrativos.

Doutores,

Posto abaixo artigo produzido pelo Professor Alain Alan Correia Pereira sobre a mitigação da inoponibilidade da exceção de contrato não cumprido nos contratos administrativos.

Interessante conferir o trabalho do professor justamente para demistificar a idéia de que o particular deverá sempre suportar as arbitrariedades do Poder Público,

No mais, confiram abaixo.

Abraços a todos,


Mitigação da inoponibilidade da exceção de contrato não cumprido nos contratos administrativos.



Alain Alan Correia Pereira.



Especializado em Direito Administrativo pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia (UFBA). Procurador e Consultor Municipal. Professor Titular de Direito Constitucional e de Direito Administrativo do Curso de Direito da Faculdade Maurício de Nassau/Bahia, Sócio fundador da Pereira & Xavier Advogados Associados.



Resumo: A Administração Pública, no exercício da sua função que lhe compete, celebra contratos submetidos a regimes jurídicos integralmente de direito púbico ou predominantemente de direito privado. Se utilizando de potestade pública, o Estado comparece na relação jurídica em posição de superioridade em relação ao seu contratado particular, gozando de prerrogativas inconcebíveis nos contratos de direito privado e que caracterizam o que a doutrina chama apropriadamente de ‘contrato administrativo’. Dentre elas, a faculdade de restringir o direito do particular quanto à arguição desde o início da exceção do contrato não cumprido. A interpretação de tal prerrogativa nos casos concretos reclama mitigação para que não se oficialize a inadimplência estatal.



Palavras-chave: contrato administrativo – cláusulas exorbitantes – inadimplência da Administração – exceção de contrato não cumprido.



Summary: The Administration, in exercise of its function as it shall, enter into contracts subject to full legal regimes of law pubic or predominantly private law. If using the potestade public, the state appears on the legal relationship in a position of superiority over its private contractor, enjoying prerogatives inconceivable in private law contracts and featuring the aptly calls the doctrine of 'public contract'. Among them, the option of restricting the right of the individual regarding the complaint from the beginning of the exception of the contract is not fulfilled. The interpretation of this prerogative in a particular case calls for not mitigating oficialize the default state.



Keywords: administrative contract - exorbitant clauses - default Administration - except for the contract is not fulfilled.



Sumário: Introdução: contratos celebrados pela Administração Pública. 1. Considerações gerais sobre contrato. 2. Considerações sobre contratos da Administração. 3. Contrato Administrativo. 4. Cláusulas exorbitantes. 5. Exegese do art. 78, inciso XV, da Lei nº 8.666/1993. 6. Conclusão. Referências.





Introdução: Contratos celebrados pela Administração Pública.



Doutrinadores de nomeada afirmam categoricamente que, diante do regime jurídico próprio dos contratos administrativos, conferindo ao Poder Público um feixe de privilégios que se constituem nas chamadas ‘cláusulas exorbitantes do direito comum’, descabe ao particular contratado invocar a exceção de contrato não cumprido enquanto não decorrer 90 (noventa) dias de atraso, por parte da Administração contratante, dos pagamentos devidos ao seu colaborador, cujo fato tem levado a abusos intoleráveis.

            Com efeito, o Poder Público tem usado dessa suposta ‘prerrogativa’ para atrasar injustificadamente obrigações de pagamento que contraiu perante o colaborador particular, deste exigindo a continuidade na execução do trato pelo prazo prescrito no art. 78, inciso XV, da Lei federal nº 8.666, de 21 de junho de 1993, ameaçando-lhe com as sanções legais em caso de imediata suspensão da obra, serviço ou fornecimento.

            O presente artigo visa a desmistificar a matéria, pois não é defensável que a Administração Pública cause prejuízo deliberado ao particular contratado, ainda que supostamente valendo-se da lei (ou alegando seu estrito cumprimento) na persecução do interesse público. Se para o Poder Público o contrato administrativo visa a satisfazer o interesse coletivo, o fim almejado pelo particular contratado é o lucro, além da obtenção do ‘justo preço’ como contraprestação da obra, serviço ou fornecimento.

            Em face do princípio da boa-fé que informa os negócios jurídicos em geral, é preciso lançar um novo olhar sobre a disposição do art. 78, inciso XV, da Lei federal nº 8.666/1993, no sentido de conformar a sua exegese com os direitos e garantias do particular contratado, coibindo-se o vulgarmente chamado ‘calote oficial’ (fantasma que aterroriza os que se aventuram a travar relações jurídicas com o Estado).

            Para melhor sistematização, este breve estudo será dividido em capítulos que abordarão noções básicas de contrato em geral e o necessário recorte para o contrato da administração, do qual contrato administrativo é espécie. Em seguida, serão estudadas as cláusulas exorbitantes que caracterizam o contrato administrativo e, do seu elenco, destacada a que trata da inoponibilidade da exceptio non adimpleti contractus, com os comentários pertinentes. Finalmente, serão apresentadas as conclusões do autor. 





1. Considerações gerais sobre contrato.



Nas palavras de Cretella Junior (1989, p. 332) contrato significa, etimologicamente, o arrastamento simultâneo fundado na fidúcia recíproca das partes, cujas vontades se originam em pontos diferentes, mas que convergem para o mesmo objetivo, atingindo-o, cruzando-se, a final, e partindo, novamente, em direções opostas. Segundo o autor, “verifica-se no contrato um verdadeiro quiasma ou cruzamentos nas direções: o objeto e o fim pretendidos por cada parte surgem como consequência do objeto e fim da parte contrária, o que confere ao ato a mais perfeita unidade jurídica.”

            No direito pátrio, o contrato é garantido pela própria lei – que o protege e lhe assegura a executoriedade –, sendo definido como todo acordo de vontades manifestado livremente pelas partes com o fim de criar, modificar, resguardar, transferir ou extinguir direitos. Todavia, nem toda manifestação livre de vontades implica necessariamente num contrato, consistindo a diferença específica entre ambos no fato de que, no primeiro, verifica-se a divergência de objeto e de fim desejados pelos contraentes.

            Instituto jurídico típico do direito privado, o contrato remonta ao Direito Romano que o distinguia de pacto, pois somente aquele poderia ter o seu objeto perseguido em juízo, enquanto que o pacto não era dotado de exigibilidade. Coube a Savigny pacificar o entendimento de que, em verdade, se tratam de expressões sinônimas.

Daí porque neste estudo as expressões pacto, trato, ajuste, avença ou designações quejandas têm o mesmo sentido de contrato, havido como um acordo fundado nos princípios da autonomia da vontade e da igualdade jurídica dos contratantes, dele se utilizando o Estado no exercício da sua função pública para atender ao interesse geral da coletividade. Nesse caso, com adaptações para atender ao regime jurídico próprio da Administração, notadamente os princípios da supremacia do interesse público e o da indisponibilidade desse mesmo interesse que lhe cabe curar.

            A presença de certos elementos é indispensável para haja um contrato, apontando-se, de plano, a capacidade das partes, o objeto lícito e a forma prescrita ou não proibida por lei, além do consentimento, que pode ser tácito ou expresso. Advirta-se que a ausência de qualquer desses elementos torna o contrato inexistente, absolutamente inapto a produzir efeitos válidos no mundo jurídico.

Em seu magistério, Meirelles (2000, p. 198) assevera que “todo contrato é negócio jurídico bilateral e comutativo, isto é, realizado entre pessoas que se obrigam a prestações mútuas e equivalentes em encargos e vantagens”. Conquanto bilateral na sua formação, o contrato pode gerar efeitos unilaterais, bilaterais ou multilaterais. Uma vez celebrado em âmbito de particulares, as partes não podem se arrepender ou revogá-lo sem que haja mútuo consentimento.

Deveras, dois princípios dominam os contratos, sejam eles públicos ou privados: o de que seus termos formam lei entre as partes (lex inter partes) e o da estrita observância ao convencionado (pacta sunt servanda), compelindo-as a cumprir as promessas e obrigações recíprocas.

De outra face, a liberdade de contratar não é ampla e absoluta, mesmo nos contratos celebrados entre particulares, porquanto a ela se contrapõe a intervenção estatal com o fim de reprimir a subjugação da parte economicamente desvalida. A propósito, estabelece o art. 421 do Código Civil de 2002 que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

Por sua pertinência, sublinhe-se que nos contratos privados as partes gozam de igualdade jurídica; implica dizer que a vontade de uma parte não prevalece nem se sobrepõe à da outra, de tal modo a não admitir-se a alteração unilateral do que elas ajustaram mutuamente, além de se obrigarem à estrita observância do pactuado. A existência de cláusulas exorbitantes no contrato administrativo quebra esse princípio intocável na relação entre privados, pois a marca distintiva dos ajustes regrados pelo Direito Público é a desigualdade jurídica vertical em prol da Administração. 

Essa desigualdade jurídica se concretiza a partir das cláusulas exorbitantes ou derrogatórias do direito comum, inseridas por força de lei em todos os contratos administrativos, independentemente de expressa previsão no respectivo instrumento escrito. São faculdades ou prerrogativas que a lei confere à Administração para instabilizar os contratos celebrados com os particulares, o que ressalta a importância do seu estudo.





2. Considerações sobre contratos da Administração.



            Na gestão do interesse público, a Administração vê-se compelida a celebrar negócios jurídicos com outras pessoas, inclusive administrados, por isso criando vínculos que retratam a vontade das partes. Tais negócios jurídicos da Administração podem ser celebrados e executados em regimes diferenciados, ora integralmente público, ora predominantemente privado.

Em sentido amplo, contratos da Administração são acordos de vontades de que participa os órgãos ou entidades da Administração Pública. Com habitual acurácia, Meirelles (2000, p. 199) esclarece que o Estado pode celebrar contratos “na sua pureza originária (contratos privados realizados pela Administração)”, como a locação ou comodato, ou “com adaptações necessárias aos negócios públicos (contratos administrativos propriamente ditos)”, v.g., contrato de empreitada ou de concessão de serviço público, ambos sujeitos à teoria geral dos contratos. Em outra obra literária, apresenta a seguinte classificação:



[...] De acordo com a sistemática implantada desde o Decreto-lei 2.300, de 1986, mantida pela atual Lei de Licitações, coexistem três espécies contratuais, a saber: contrato privado, contrato semipúblico e contrato administrativo.



Contrato privado é o celebrado entre particulares, sob a égide do Direito Privado, em que prevalece a igualdade jurídica entre as partes e, via de regra, a informalidade.



Contrato semipúblico é o firmado entre a Administração e particular, pessoa física ou jurídica, com predominância das normas pertinentes do Direito Privado, mas com as formalidades previstas para os ajustes administrativos e relativa supremacia do Poder Público.



Contrato administrativo típico a Administração só realiza quando dele participa como Poder Público, derrogando normas de Direito Privado e agindo publicae utilitatis causa, sob a égide do Direito Público. Tais são os contratos de serviço público, os de obra pública, os de prestação de atividades específicas da Administração, ajustados com particulares ou com outra entidade administrativa, nos moldes prefixados na lei, no regulamento ou no edital, e com correspondentes cláusulas no instrumento contratual. Em tais ajustes a Administração afirma a sua supremacia estatal fixando as condições do contrato, embora permita discussão com o particular interessado na contratação para a redação de algumas cláusulas definitivas do negócio administrativo. Mas não se exige um divórcio total entre o contrato de Direito Privado e o contrato administrativo, bastando, no ajuste, a prevalência das normas de Direito Público para que o contrato se caracterize como administrativo.” (MEIRELLES, 1999, p. 176).



            Acerca dos contratos semipúblicos, a exemplo do contrato de locação ou de comodato celebrado pela Administração sem prerrogativas de Direito Público, sua legalidade e respectivas formalidades dependem da verificação de exigências prévias (como empenho ou licitação) e posteriores (a exemplo de registros internos ou publicação na imprensa oficial), reguladas exclusivamente pelo Direito Administrativo. Constata-se, por conseguinte, que a lei pretende ‘publicizar’ os ajustes de direito privado da Administração.

Calha recordar, ainda, a classificação adotada por Zanella Di Pietro (2004, p. 245) para os contratos da Administração: a) contratos de direito privado, aqueles parcialmente derrogados por normas publicistas; e b) os contratos administrativos, incluindo-se nessa categoria os tipicamente administrativos, como a concessão de serviço público, e os que têm paralelo no Direito Privado, mas que também são regidos pelo Direito Público, a exemplo do empréstimo, depósito e empreitada.

A par dessas classificações, vem a talho a ressalva de que a distinção entre contratos da Administração e contratos administrativos é menos importante em nosso país – que adota o sistema inglês de jurisdição única –, do que em outros adotam o regime do contencioso administrativo. Isto porque, no sistema de controle adotado pelo Brasil, ambas as espécies de contrato se sujeitam ao crivo do Poder Judiciário, enquanto que os países que adotam o regime do contencioso administrativo, somente os contratos da Administração se sujeitam ao crivo do Poder Judiciário.





3. Contrato Administrativo.



            Os contratos administrativos reclamam os mesmo requisitos de validade dos contratos privados; é dizer, a capacidade das partes, o objeto lícito, a forma prescrita por lei e o consentimento. Além das características comuns com os ajustes privados, aos contratos administrativos são acrescidas outras especiais, a saber:



a)      Bilateralidade: impõem obrigações recíprocas entre a Administração e o seu contratado (outra entidade do Poder Público ou pessoa jurídica de direito privado).

b)      Comutatividade: estabelecem prestações equivalentes entre as partes.

c)      Onerosidade: os serviços, obras e fornecimentos contratados pela Administração devem ser sempre remunerados, cf. art. 37, XXI, da Constituição Federal.

d)     Formalidade: o contrato administrativo é solene por natureza e reclama formalidades intrínsecas e externas, v.g., contrato escrito, publicação na imprensa oficial, etc.

e)      Intransferibilidade: tem caráter personalíssimo e é celebrado intuitu personae.

f)        Interesse público: fim público da prestação avençada.

g)      Instabilidade do contrato: Como visa a atender o interesse público, nenhum colaborador da Administração Pública adquire o direito à execução integral ou imutável do contrato, pois os interesses coletivos não se subordinam aos interesses privados. Aqui é que se encontram as cláusulas exorbitantes, elencadas no art. 58 da Lei federal nº 8.666/1993 e, ainda, em outros dispositivos daquele estatuto federal das licitações e contratações públicas.



            Os doutrinadores franceses, a exemplo de Waline (1969, v. I, p. 394), entendem que os contratos administrativos se diferenciam dos contratos civis devido à existência das cláusulas exorbitantes. Para Benoit (1968, p. 597), todo contrato seria de direito privado, considerando como contrato de Direito Administrativo somente aquele que contivesse estipulações estranhas ao direito comum, mas submetidas às regras de Direito Público.

            Os contratos públicos da Administração contêm características especialíssimas que, informadas por peculiar regime jurídico-administrativo, ‘ultrapassam’, ou seja, ‘exorbitam’ as normas do direito comum. Jèze assevera que



[...] os contratos são administrativos porque requerem a aplicação dos princípios e regras típicas do direito administrativo. Todo contrato que, pela sua forma ou natureza, exige, em caso de litígio, o conhecimento e aplicação de tais princípios, é contrato administrativo, no sentido da expressão. Não há dúvida de que, sob certos aspectos, os contratos administrativos se assemelham aos contratos celebrados pelos particulares. O regime jurídico de um e de outro, a uma análise superficial, é idêntico, mas apenas na aparência, porque elemento essencial – cláusulas exorbitantes – está presente nos contratos administrativos, elemento ausente nos contratos de direito comum.



[...]



Por um lado, a Administração quis esse regime especial; de outro, o particular, ao submeter-se voluntariamente a esse regime especial, renunciou a invocar as regras de direito privado para a determinação de sua situação jurídica, direitos e obrigações (apud CRETELLA JUNIOR, 1978, p. 154).



            Conclui-se, destarte, que as características substanciais do contrato administrativo não são o interesse público ou a presença do Poder Público na relação jurídica. Deveras, o interesse público é exigido em todos os comportamentos da Administração; por outro lado, nos contratos regidos por normas de direito privado se verifica a participação da Administração num dos polos.

Também não é o objeto que caracteriza o contrato administrativo – seja obra, serviço ou fornecimento, até porque materialmente idêntico aos ajustes celebrados entre particulares.

Bandeira de Mello (2002, p. 561), conceitua o contrato administrativo como um tipo de ajuste travado entre o Poder Público e terceiros, “no qual, por força de lei, cláusulas pactuadas ou do tipo do objeto, a permanência do vínculo e as condições pré-estabelecidas assujeitam-se a cambiáveis imposições de interesse público, ressalvados os interesses patrimoniais do contratante privado”.

O regime jurídico dos contratos administrativos se caracteriza, na sua essência, pela possibilidade que tem a Administração de instabilizá-lo em razão do interesse público, como professa Gasparini (2004, p. 555): “o poder de instabilizar o vínculo pode estar centrado no fato de que o objeto do contrato deve ser prestigiado” e sobre ele “nenhum direito tem o contratante particular.”





4. Cláusulas exorbitantes.



            Como dito alhures, a noção de cláusulas exorbitantes ou cláusulas derrogatórias tem origem no direito francês e designa os privilégios ou prerrogativas que a supremacia do interesse público confere à Administração nos negócios jurídicos por ela celebrados. Batista Santos, com esteio em José Cretella Junior, conceitua as cláusulas exorbitantes, também chamadas de cláusulas de privilégios, cláusulas de prerrogativas ou cláusulas derrogativas, como as



[...] que permitem à Administração, “no interior do contrato”, inegável posição de supremacia, de desnível, verticalizando o Estado em relação ao particular contratante, mostrando ao intérprete que, ao contratar, a Administração “não desce”, “não se desnivela”, “não se privatiza”, não abdica de sua potestade pública  (“puissance publique”), mas, ao contrário, “dirige” o contratante, fiscaliza-lhe os atos, concede-lhe benefícios, aplica-lhes penalidades, baixa instruções, transfere-lhe alguns privilégios de que é detentora, impõe-lhe “sujeições”, sempre fundada no interesse público, do qual é guardiã ininterrupta (BATISTA SANTOS, 1995, p. 178).



            Em outra de suas valiosas obras, Cretella Junior assevera que



[...] cláusula derrogatória, também chamada cláusula exorbitante do direito comum, é toda proposição que se insere no contrato administrativo, tipificando-o. A teoria da cláusula exorbitante ou derrogatória permite  estabelecer a diferença entre o contrato administrativo e o contrato de direito privado, ou seja, os primeiros abrigam cláusulas especiais, que fogem do direito civil, configurando o regime jurídico especial de direito público. As cláusulas derrogatórias são chamadas de cláusulas penais, cláusulas que preveem o direito de rescisão unilateral em proveito da Administração ou o poder que tem a Administração de baixar instruções. Alguns autores definem a cláusula exorbitante como toda cláusula estranha ou desusada nos contratos de direito privado ou, em outras palavras, toda cláusula que, inserida num contrato de direito privado, iria atentar contra a ordem pública. (CRETELLA JUNIOR, 1978, p. 126)



            A existência das cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos garante a satisfação das necessidades coletivas, a elas se submetendo o particular que, nessa relação jurídica, cabe o papel de mero colaborador da Administração (nada obstante a sua perseguição do lucro).

            Configuram-se como exorbitantes aquelas cláusulas explicitadas no art. 58 da Lei federal nº. 8.666/93: possibilidade de modificar unilateralmente o contrato para melhor adequação às finalidades de interesse público, respeitados os direitos do contratado; possibilidade de por fim ao contrato, unilateralmente, meio à sua execução por razões de inadimplemento do contratado ou por mera conveniência administrativa nos casos especificados em lei; fiscalizar a execução do contrato; aplicar penalidades ao contratado pela inexecução parcial ou total de suas obrigações, nos casos de prestação de serviços essenciais, ocupar provisoriamente bens móveis, imóveis, pessoal e serviços vinculados ao objeto do contrato, para cautelar a apuração de faltas administrativas contratuais, assim como na hipótese de rescisão do contrato administrativo.

Além dessas prerrogativas, podemos citar como cláusulas exorbitantes a possibilidade do Estado exigir do seu colaborador particular a prestação de garantia para a execução do contrato, nos termos do art. 56 do mesmo diploma legal, bem como a impossibilidade do particular arguir desde o início a exceção do contrato não cumprido, em caso de falta de pagamento por parte da Administração contratante, como se infere do art. 78 do estatuto federal de licitações e contratos.

Em compensação às prerrogativas da Administração, o particular tem direito impostergável à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro nos termos da proposta oferecida na licitação que precedeu a celebração do contrato. Equilíbrio econômico-financeiro consiste na equivalência honesta entre os encargos do contratado e a remuneração justa devida pela Administração, pois esta não pode causar prejuízos aos seus colaboradores.

Ao presente estudo interessa o exame da cláusula exorbitante de que trata o art. 78, inciso XV, da Lei federal nº 8.666/1993; é dizer, a inoponibilidade desde o início da cláusula exceptio non adimpleti contractus e, de corolário, a suposta obrigação do particular contratado em manter a regular execução do contrato administrativo pelo prazo de 90 (noventa) dias nas situações em que a Administração contratante esteja inadimplente com a sua obrigação de pagar a contraprestação devida.





5. Exegese do art. 78, inciso XV, da Lei nº 8.666/1993.



            Aponta-se como cláusula exorbitante a decorrente de lei que impossibilita ao particular contratado arguir desde o inicio a exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus).  Em outras palavras, o administrado não pode invocar o descumprimento de obrigações por parte do Poder Público a fim de também deixar de cumprir as que lhe compitam.

            Afirmam alguns que a regra do inciso XV do art. 78 da Lei nº 8.666/93 somente autoriza o particular contratado a suspender a execução do ajuste – ou requerer judicialmente a rescisão do contrato – se o atraso nos pagamentos que lhe forem devidos pela Administração ultrapassar o prazo de 90 dias.

            Em seus apontamentos, Madeira (2003, p. 705) alude a parte da doutrina especializada que admite, “diante da garantia do art. 5º, XXXV da Constituição da República”, o direito do particular “contratado em obter provimento judicial que lhe assegurasse a suspensão da execução do contrato” em prazo inferior aos 90 dias, a fim de minorar os efeitos da inadimplência do Estado.

É verdade que a doutrina e a jurisprudência vêm, paulatinamente, abrandando a inoponibilidade da exceção do contrato não cumprido nos contratos administrativos, entendendo que o atraso de 90 dias somente é exigível para a hipótese de rescisão judicial a pedido do particular contratado. Todavia, em caso de suspensão da execução do ajuste, não há vinculação àquele ou a qualquer outro prazo.

Segundo Mukai (1997, p. 89), “é possível suspender, de imediato, os serviços ou fornecimentos, na ocorrência de débitos vencidos e não pagos, por parte da Administração direta e indireta”, segundo a inteligência da parte final do inciso XV do art. 78 da Lei federal nº 8.666/1993, acrescentando que “o atraso superior a 90 (noventa) dias é motivo somente da rescisão do contrato. A suspensão da execução contratual não é abrangida pelo atraso superior a 90 (noventa) dias”. Com esteio na lição de Marçal Justen Filho, ressalta ainda que “a Administração não dispõe da faculdade de exigir o cumprimento da prestação pelo particular quando, simultaneamente, está decidida a não cumprir o contrato”, acrescentando mais adiante que



[...] se a Administração deliberou não cumprir as prestações que lhe incumbiam seria injurídico que mantivesse o contrato apenas para auferir os benefícios e as vantagens derivadas da prestação da outra parte. Portanto, o particular pode opor-se à conduta abusiva da Administração e pretender suspender a execução de suas prestações.



[...]



Da circunstância destes atrasos não serem causa de rescisão contratual não se segue, logicamente, que ditos atrasos estejam juridicizados, abonados normativamente e se hajam convertido em comportamentos lícitos e, ademais, impedientes da alegação da exceção de contrato não cumprido.



Os dispositivos em pauta significam tão-só que as leis em questão recusaram atribuir ao contratante privado, em razão do só fato destes atrasos, direito a rescisão contratual. Mas a invocação da exceptio non adimpleti e rescisão contratual são coisas perfeitamente distintas; não há por que confundi-las (MUKAI, 1997, p. 89).



Acerca do que se deve entender por justa causa para a suspensão ditada pela parte final do inciso XV do art. 78 da Lei federal nº 8.666/1993, o próprio Mukai assevera que



[...] não se poderá negar que o seja a inadimplência da outra parte em pagar tempestivamente o devido, causando, assim, agravo à intangível equação econômico financeira. Não se poderá recusar esta qualificação a um comportamento administrativo que – ao arrepio do contrato – sobrecarregue economicamente a parte privada e he cause prejuízo e transtornos financeiros.



[...]



Posto que a Administração deve cumprir fielmente o contrato, tanto quanto o contratante privado, posto que deve pagar com pontualidade, posto que não pode nem deve desequilibrar a equação financeira do ajuste, resulta que, se o fizer, incorre em procedimento ilegítimo que determina ocorrência de ‘justa causa’ para o contratante privado eximir-se, nos contratos de obras públicas, de prosseguir executando a obra enquanto perdurar a mora do Poder Público (MUKAI, 1997, p. 110),



Para dar apoio a sua tese, o indigitado autor transcreve a seguinte decisão judicial:



Contrato administrativo – Inadimplência das pessoas estatais – Atraso no pagamento de medições já efetuadas – Direitos das empreiteiras contratantes – Indenização dos prejuízos sofridos – Verbas cabíveis – Suspensão do prosseguimento das obras com apoio na argüição de exceptio non adimpleti contractus – Direito de postular judicialmente a rescisão do contrato (RT 562/37).



             Prossegue Toshio Mukai em seus apontamentos:



[...] Daí ser correta a interpretação no sentido de que a invocação da exceptio (pois se trata disso, no caso) pelo particular contratado não está condicionada à decorrência dos 90 (noventa) dias, que vale apenas para a hipótese da rescisão contratual (o que, aliás, é o que o art. 78, inciso XV, comanda).



E não poderia ser diferente, pois se se trata da aplicação da cláusula, exceptio non adimpleti contractus há que se aplicá-la em seu significado conceitual e legal: ‘No contrato bilateral, o inadimplente não pode compelir o outro contraente a realizar a prestação que lhe incumbe [...]. Veja-se que aí não há prazo nenhum: a não-realização da prestação por aquele que não é o inadimplente é imediata, em face deste que é o inadimplente.



No caso do inciso XV, nossa interpretação evita o absurdo de impor ao contratado que, durante longo tempo (noventa dias) se sacrifique, financiando a obra, o serviço ou fornecimento, o que contraria toda a doutrina já vista. Evita-se, pois, o absurdo, o iníquo.



Ademais, também o disposto no inciso III do mesmo artigo 78 demonstra claramente que nossa interpretação está correta, pois ali a lei dispõe que é motivo de rescisão do contrato: V – a paralisação da obra, do serviço ou do fornecimento, sem justa causa e prévia comunicação à Administração”.



Ora, se o contratado tiver justa causa (e no caso presente, sem dúvida, tem essa justa causa) e comunicar previamente a Administração a paralisação, não pode sofrer represália, pois a hipótese, sem nenhum condicionamento à decorrência dos 90 (noventa) dias, está autorizada em lei.



Destarte, não seria cabível (ao contrário, seria contraditório o legislador) que a Lei autorizasse no inciso V a paralisação da execução do contrato, de imediato, desde que por justa causa, e não admitisse o mesmo no inciso XV, onde o atraso de pagamento é, sem dúvida, justa causa, posto que, em última análise, significa a quebra do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, direito sagrado do contratado, segundo a doutrina administrativista.



A missão do exegeta é harmonizar a interpretação dos textos legais e não colocá-los em contradição (MUKAI, 1997, p. 110).



            Prestigiando tal entendimento, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, pela sua 4ª Turma, lavrou acórdão nos autos da Apelação Cível nº 94.01.11463-3/DF, com ementa vazada nestes termos:



PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CAUTELAR. PRESSUPOSTOS. CONFIGURAÇÃO. DESCUMPRIMENTO DE CONTRATO PELA ADMINISTRAÇÃO. FALTA DE PAGAMENTO. ÔNUS INSUPORTÁVEL. MITIGAÇÃO À CLÁUSULA DA ‘EXCEPTIO NON ADIMPLETI CONTRACTUS’.



1 - A doutrina e a jurisprudência têm mitigado o alcance da cláusula de ‘exceção ao contrato não cumprido, posto que não pode o contratado suportar, indefinidamente, o ônus pela falta de pagamento de serviço prestado, nisso residindo o fumus boni juris.



2 – O prejuízo decorrente do inadimplemento contratual, pela Administração, autoriza, por si só, o reconhecimento do ‘periculum in mora’ [...].

 

Sem sombra de dúvida, não se constitui como obrigação do particular contratado ‘financiar’ atividade estatal para a satisfação das necessidades próprias ou da coletividade. Destarte, causa espanto o entendimento de que o art. 78, inciso XV, da Lei federal nº 8.666/1993 autoriza conduta temerária da Administração a ponto de determinar o cumprimento de obrigações “até o prazo de noventa dias de atraso”.

 Em verdade, esse mandamento do estatuto federal de licitações e contratos administrativos deve ser interpretado e aplicado nos casos concretos em consonância com os dispositivos do Código Civil (Lei nº 10.406, de 10.01.2002), segundo a inteligência do art. 54 da Lei nº 8.666/1993.

             Bem por isso, o contrato administrativo está jungido ao princípio da boa-fé, que se estampa pelo dever das partes em agir de forma proba antes, durante e depois do contrato, como cristalizado no art. 422 do Código Civil de 2002, cuja disposição constitui modalidade que a doutrina convencionou denominar ‘cláusula geral’, por isso integra qualquer contrato, público ou privado, independentemente de transcrição ou de expressa referência.

Partindo dessa premissa, não se coaduna com o princípio da boa-fé a exigência de que o contratado cumpra a sua obrigação no tempo e forma em que se ajustou, se o contratante descumpriu primeiramente a sua obrigação de pagar e, mais grave, utiliza-se do texto legal para justificar a continuidade da prestação ou fornecimento “porque o atraso do pagamento não foi superior a noventa dias”.

            Pode-se aduzir, ainda, que a suposta inexecução parcial do contrato administrativo, pelo particular, em face da inadimplência do Poder Público decorre de típico fato da administração, definido pela boa doutrina como



[...] toda ação ou omissão do Poder Público que, incidindo direta e especificamente sobre o contrato, retarda, agrava ou impede sua execução. Esse fato se equipara à força maior e produz os mesmos efeitos excludentes da responsabilidade do particular pela inexecução do ajuste, ensejando, ainda, as indenizações correspondentes (MEIRELLES, 1999, 219).





6. Conclusão.



            Diante do princípio da boa-fé e dos demais princípios que informam a atuação da Administração Pública, esta não pode deliberadamente causar prejuízos aos particulares contratados, ainda que privilegiada com as prerrogativas decorrentes da supremacia do interesse público. Também não pode valer-se da interpretação gramatical, filológica, do art. 78, inciso XV, da Lei federal nº 8.66/1993, para ‘oficializar o calote’ perante o seu colaborador, exigindo a continuidade da execução do contrato administrativo quando se encontrar inadimplente quanto à obrigação de pagar as faturas devidas ao contratado.

A correta exegese do referido diploma legal não rende ensejo a considerar que a Administração Pública tem o ‘direito’ de atrasar o cumprimento de suas obrigações pelo prazo de até 90 (noventa) dias, devendo o particular contratado permanecer inerte até completar-se aquele lapso temporal.

Muito pelo contrário. Pode e deve o particular buscar a tutela do Estado-Juiz, a fim de precatar-se de eventuais penalidades que a Administração queira lhe aplicar em caráter de represália, bem como obter provimento – inclusive em sede de liminar – que lhe garanta a suspensão da execução da obra, serviço ou fornecimento quando a Administração Pública atrasar, sem justo motivo, os pagamentos da contraprestação devida, mesmo que ainda não haja decorrido o prazo de 90 (noventa) dias de inadimplência.


Referências:



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