Interessante conferir a análise de
Daniel Giotti de Paula sobre o princípio do não-confisco.
Abraço,
Princípio do não-confisco é
problema esquecido
Por Daniel Giotti de Paula
A Constituição da República
Federativa do Brasil, em seu artigo 150, IV, CF, veda que a tributação tenha efeito
confiscatório. No seio da sociedade, nas rodas de empresários, em reuniões de
contadores, advogados e juristas, em geral, vez por outra se afirma que a
tributação brasileira é muito alta e, por isso, seria confiscatória.
O que seja confisco, porém, é algo
extremamente indeterminado, não havendo cidadão, jurista, ministro do STF que
possa com certeza definir. Na Alemanha, já disseram que tributação
confiscatória é aquela que atinja mais de 50% do patrimônio de alguém – pois só
tem direito de propriedade quem possui controle majoritário sobre o patrimônio
-, na Argentina chegaram a um critério de que é confisco tributo que incida
sobre 33% do patrimônio a ser herdado ou já existente, não aplicável a tributos
aduaneiros ou que incidam sobre o consumo, tendo em vista a repercussão
econômica ser suportada por outrem, como se o tributo que era custo se
transformasse em obrigação suportada pelo consumidor, que tem liberdade ou não
de comprar produto ou serviço2.
O Supremo Tribunal Federal nunca
chegou a um valor econômico a partir do qual tributo seria confiscatório, mas
já sinalizou que a tributação confiscatória deve ser aferida a partir do que é
cobrado e instituído no âmbito de cada ente político e, ainda, que essa análise
deve ser casuística, e não em tese, já que em muitos casos os tributos pagos
por um contribuinte sofrem deduções, isenções, imunidades etc3.
Na doutrina, já se afirmou que
sobre a propriedade o confisco deve ser analisado em uma perspectiva estática,
pois se a propriedade gera frutos – valorização imobiliária, alugueis,
exploração direta para atividades econômicas -, ela não é aniquilada ao longo
do tempo4. Se o tempo gera um acúmulo de tributos a ser pago, também gera o
acúmulo de riqueza, em uma situação de normalidade econômica.
A tese, portanto, de que a carga
fiscal brasileira é confiscatória deveria vencer dois argumentos fortes.
A um, o de que a Constituição
brasileira é altamente pródiga na concessão de direitos fundamentais, de modo
que se todo direito ou serviço público envolve custos5 a serem realizados com
os créditos públicos6, as receitas públicas são do tamanho da Constituição da
República Federativa do Brasil. Ela é pródiga, excessiva, mas se os direitos
fundamentais são cláusulas pétreas, enquanto as promessas constituintes não
forem atendidas, pensar em tributação menor se torna difícil.
A dois, como o sistema tributário
brasileira apresenta a peculariedade de tributar renda e consumo, a análise do
confisco deve variar em cada um dos pontos. Na tributação sobre renda, a vedação
ao confisco deve ter aplicação mais direta; na tributação sobre o consumo, em
tese, a incidência do princípio atrairia outras considerações de ordem material
e processual.
Todas as considerações feitas até
agora partem de uma análise sobre as obrigações tributárias principais, ou
seja, sobre o dever de pagar tributo. No entanto, a vedação ao confisco também
poderia ser analisada sob o viés das obrigações tributárias acessórias. Estudos
recentes mostram que “a excessividade (sic, o excesso) de obrigações acessórias
impostas pela legislação tributária aos contribuintes para o pagamento de seus
tributos tem se mostrado ao longo dos anos um entrave ao desenvolvimento
econômico do país, inibindo a realização de negócios e a atração de
investimentos, conforme atesta o famoso estudo realizado pela
PriceWaterhouseCoopers, em conjunto com o Banco Mundial, denominado "Doing
Business", segundo o qual o Brasil figurou em 2011 no 127º lugar, dentre
os 183 países pertencentes a OCDE também analisados no estudo”7.
Essas preocupações que sempre
perpassam a mídia brasileira não têm sido alvos de maiores preocupações
jurídicas, de certa forma por grande parte da doutrina tributarista ainda
insistir em teses como a de que o tributo é norma de rejeição social e se apegar,
com exagero, a premissas liberais não se coadunam com o modelo constitucional
vigente.
Daí que se possa reverter um pouco
a tendência brasileira em se preocupar muito com a possibilidade de a carga
tributária ser confiscatória, mas verificar se a burocracia
administrativo-tributária brasileira criada com a exigência de tantas
obrigações tributárias acessórias é confiscatória.
Para as obrigações tributárias
acessórias, o princípio da vedação ao confisco parece de aplicação mais
notória. Considerando que não apenas o pagamento de tributos gera custos, mas o
cumprimento dos deveres instrumentais também –e, segundo estudos, há
contribuintes que chegam a gastar 2.600 horas do seu tempo com o cumprimento de
obrigações tributárias acessórias -, a vedação ao confisco também aqui se
aplica.
Com Cristiano Carvalho8 e Aldo
Bertolucci9, chega-se a idéia de que os deveres instrumentais geram custos de
conformidade para os agentes econômicos. O que se sugere, então, é que se
reduzam os chamados custos e conformidade no Brasil – em linhas gerais, o
dispêndio que se gasta com o cumprimento da legislação tributária -, até mesmo
por um imperativo constitucional.
Claro que é constitucional exigir
do contribuinte o dever de colaboração com o Fisco, mesmo na constituição do
crédito tributário10, mas se mostra inconstitucional criar obrigações
acessórias que não se justifiquem sob o enfoque eficiência-necessidade, o que
pode levar ao uso da proporcionalidade e razoabilidade como critérios de
controle. É dizer, o gasto excessivo de tempo e de recursos com obrigações
tributárias acessórias pode, em situações extremas, levar ao confisco.
Algum conteúdo jurídico a essa
preocupação já foi dado, quando, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal
declarou inconstitucional legislação tributária que condicionava o exercício da
atividade econômica à prévia liberação de Fisco Estadual para o particular em
passivo tributário11. Embora nas razões de decidir, o argumento principal tenha
sido a vedação a cobrança de tributo por vias oblíquas, fato é que, se mesmo
quem deve não pode ter sua atividade empresarial obstada – salvo casos extremos
que agridam a própria concorrência12 - com muita mais razão alguma obrigação
tributária acessória ou o cúmulo delas também não o poderia.
Esse tema precisa ser judicializado,
embora se reconheçam algumas medidas dos Fiscos para simplificação tributária13
e isso esbarre no próprio caos e na complexidade que é o Sistema Tributário
Nacional, com seus múltiplos tributos, cobrados nos níveis federal, estadual e
municipal.
Notas de rodapé
1 DIFINI, Luiz Felipe Silveira. Proibição
de tributos com efeito de confisco. Dissertação de mestrado apresentada no
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, sob a orientação do Prof. Doutor Cezar Saldanha Souza Júnior, disponível
em
http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/7315/000498146.pdf?sequence=1,
acesso em 09.06.2012. Ver, sobretudo, páginas 49 e seguintes.
2 STF, Pleno, RE 388312/MG, rel.
orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Cármen Lúcia, j. em 1º.8.2011.
3 BARRETO, Aires. Vedação ao
efeito do confisco. In: “Revista de Direito Tributário, São Paulo:Malheiros, v.
64, pp. 96-10
4 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass
R. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. New York: W. W. Norton
& Co., 1999.
5 Lembre-se de que a atividade
financeira do Estado é instrumental e as receitas auferidas atualmente são, em
geral, derivadas – Estado cobra coercitivamente tributos e outras exações do
particular -, auferindo algo que, quando previsto no orçamento, transforma-se
em créditos públicos estimados para fazer frente às despesas públicas
previamente fixadas.
6 RÊGO, Andressa Guimarães
Torquato R. Reforma tributária viável. Obrigações tributárias acessórias e
SPED: problemas e soluções para uma efetiva simplificação das obrigações
tributárias acessórias. Disponível em
http://www.fiscosoft.com.br/a/5hnf/reforma-tributaria-viavel-obrigacoes-acessorias-esped-problemas-e-solucoes-para-uma-efetiva-simplificacao-das-obrigacoes-tributariasacessorias-andressa-guimaraes-torquato-f-rego,
acesso em 09.06.2012.
7CARVALO, Cristiano. Análise
econômica do Direito Tributário. Disponível em http://www.cmted.com.br/restrito/upload/artigos/18.pdf,
acesso em 09.06.2012..
8 Uma contribuição ao estudo
da incidência dos custos de conformidade às leis e disposições tributárias: um
panorama mundial e pesquisa nos custos das companhias de capital aberto no
Brasil. Dissertação de Mestrado apresentada no Programa de Pós-Graduação da
Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, 2003.
9 Não parece reversível a
jurisprudência que fixou que atos do próprio contribuinte constituem obrigações
tributárias em créditos tributários (súmula 436, STJ), mas um tema que ainda
aparecerá nos Tribunais brasileiros é se, dentro do direito a não auto incriminar-se,
a presunção de inocência ou de não-culpabilidade, que tem sido ampliada também
para as sanções administrativas, estaria incluída a impossibilidade de se
obrigar o cumprimento de obrigações tributárias acessórias, como declarações
que poderiam levar à cobrança de tributos ou aplicação de multas Para uma
análise do panorama europeu, especialmente, o espanhol, ver RIU, Jorge Sarró. El
derecho a no autoinculparse del contribuyente: vigência de las garantias frente
a La autoincirminación el los procedimientos ante la Inspección de la Hacienda.
Barcelona: Bosch Fiscalidad, 2009.
10 STJ, RE 413.782, Pleno, Min.
Rel. Marco Aurélio, DJ em 03.06.2005.
1'1 STF, ACO-MC n. 1657, Rel. p/o
ac. Min. Cezar Peluso,, j. em 27.06.2007, DJe em 31.08.2007.
12 À guisa de exemplo, cite-se que
“a partir de janeiro de 2013,
a Receita Federal deixará de exigir a Declaração Anual
do Simples Nacional. Já a partir de janeiro de 2012 serão extintos o
Demonstrativo de Notas Fiscais (DNF), a Declaração de Crédito Presumido de Imposto
Sobre Produtos Industrializados (IPI) e a Declaração do Imposto Territorial
Rural (DITR) para imóveis imunes e isentos. Em 2014, será extinta a Declaração
de Informações Econômico-Fiscais de Pessoa Jurídica (DIPJ). As medidas fazem
parte de um pacote anunciado pelo Fisco para facilitar a vida dos
contribuintes”, notícia disponível em http://universotributario.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1778&Itemid=374,
acesso em 09.06.2012.
Daniel Giotti de Paula é procurador da
fazenda nacional e professor, mestre em Teoria do Estado e Direito
Constitucional pela PUC-Rio e doutorando em Filosofia do Direito pela Universidade
de Girona
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