Nobres
amigos,
Tratando
da questão da segurança jurídica no sistema constitucional- tributário
nacional, confiram o texto do Professor Heleno Taveira Torres publicado no CONJUR.
Boa
leitura e forte abraço,
A
segurança jurídica do sistema de tributação
Diante
do estado de insegurança permanente, que se verifica na aplicação do Direito
Tributário, desvela-se a importância de uma teoria da segurança jurídica, não
mais formal, como ao gosto de muitos, mas segundo parâmetros materiais de
efetivação de princípios tributários, proteção da confiança e estabilidade
sistêmica.
Por
isso, ainda que a prática tributária dos entes federativos, empiricamente,
deponha em contrário — com um verdadeiro “estado de exceção permanente”, nas
palavras de Gilberto Bercovici, distante da “normalidade” dos princípios —,
nosso constitucionalismo orienta-se para um efetivo garantismo constitucional
tributário.
A
Constituição do Estado Democrático de Direito é um sistema de valores
jurídicos. As regras que a compõem somente podem ser aplicadas nos estreitos
limites dos valores que as densificam por meio dos princípios. Nessa linha de compreensão,
o princípio constitucional do Sistema Tributário Nacional não tem simplesmente
a função de coordenar o conjunto de todos os tributos em vigor. Vai muito além
disso. Trata-se de um subsistema constitucional — da Constituição material
tributária — dirigido à concretização das garantias e princípios
constitucionais para proteção de direitos fundamentais ao tempo do exercício
das competências materiais tributárias, tanto de instituição quanto de
arrecadação dos tributos. E todo esse esforço tem como único propósito conferir
segurança jurídica aos contribuintes em face do exercício do chamado “poder de
tributar”, assim entendido o plexo das suas competências.
Para
Gustav Radbruch, a “segurança”, per se, ao lado da “justiça” e da
“liberdade”, formam os valores clássicos do Direito de qualquer sociedade
livre, justa e igualitária. Neste modelo, a segurança seria um subprincípio da
Justiça, porque, dada a dificuldade para se fixar o “justo”, ao menos deve-se
procurar fixar aquilo que é “jurídico”, como equivalente a “seguro”.
Assume-se,
assim, que o princípio-garantia de segurança jurídica do Sistema Constitucional
Tributário qualifica-se tanto pelo seu aspecto formal, quanto pelo âmbito
material, o que é uma das contribuições desse novo modelo aqui apresentado,[1] à luz dos valores do Estado
Democrático de Direito.
A
construção do princípio de segurança jurídica, para os fins deste estudo, em
uma proposta funcional, define-se como princípio-garantia constitucional que
tem por finalidade proteger direitos decorrentes das expectativas de confiança
legítima na criação ou aplicação das normas tributárias, mediante certeza
jurídica, estabilidade do ordenamento ou efetividade de direitos e liberdades
fundamentais.
À
luz do positivismo jurídico metódico-axiológico, compreende-se a segurança
jurídica a partir do sistema jurídico segundo os valores institucionalizados e
mediatizados por princípios, a permitir a abertura sistêmica para atualização e
acomodação à realidade, ou, ainda, a incorporação institucionalizada de novos
valores.
Não
basta uma ordem objetiva de valores condensados em textos, princípios e
programas normativos se estes não forem concretizados em cada caso. E
compreender a Constituição como ordem de valores é aceitar uma concepção
garantista de segurança jurídica quanto à efetividade dos direitos e liberdades
que contempla.
O
garantismo constitucional tributário, assim, desvela-se do compromisso da
Constituição do Estado Democrático com a concretização da ordem axiológica ao
longo de todo o Sistema Tributário, cogente para os atos de aplicação material
dos tributos.
Princípios
são normas jurídicas que prescrevem condutas com preferência de valores
vinculantes para todo o sistema jurídico, com ou sem limitação a específicas
regras ou subsistemas, obrigam ao máximo de observância e efetividade e vedam
qualquer conduta em sentido contrário ao seu conteúdo essencial.
Não
basta, pois, que o conteúdo essencial seja devidamente delimitado. Esse é um
passo importante na efetividade da garantia de segurança jurídica dos
princípios, quanto à aferição da “certeza” do seu conteúdo e, por conseguinte,
à compreensão do âmbito material possível de otimização. Ademais, a cada ato de
aplicação do direito positivo, deve-se promover sua “concretização”.
Os
valores devem ser concretizados. Como finalidade das normas jurídicas, cabe ao
intérprete dirigir a aplicação das normas segundo os valores que a sociedade
quer ver concretizados, como ressalta Christophe Grzegorczyk, nos termos da
Constituição e das leis de todo o ordenamento jurídico.[2]
A
segurança jurídica como garantia dos princípios é um traço marcante do
constitucionalismo do Estado Democrático de Direito, e essa garantia
efetiva-se, como método preponderante, pela concretização dos princípios, na
sua máxima observância ou “otimização” na aplicação e criação das “regras” stricto
sensu; e, como método complementar, limitadamente aos casos de “colisão” de
princípios, diante de casos concretos, e nunca in abstracto, quando pode
até justificar-se o sopesamento.
A
maior virtude da teoria de Robert Alexy[3] está em destacar os princípios
como mandamentos de otimização, porque determinam a realização das condutas
reguladas segundo suas melhores possibilidades fáticas e jurídicas. Esta é uma
contribuição definitiva para o direito e que se integra a toda e qualquer
hipótese de concretização dos princípios jurídicos. Diversamente, porém,
insistimos que a concretização da norma-princípio não está vinculada não
propriamente a fins, mas ao valor por esta veiculado.
É
inegável que a segurança jurídica e suas garantias derivadas, como proibição de
excesso, proporcionalidade, razoabilidade, acessibilidade e confiança legítima,
configuram-se como típicas garantias asseguradas aos contribuintes, as quais,
ainda que não expressamente discriminadas, constituem-se em modalidades de
“limitações constitucionais ao poder de tributar” e, por conseguinte,
acomodam-se ao conjunto das regras de identidade do sistema constitucional,
como expressões de cláusulas pétreas, protegidas pelo artigo 60, parágrafo 4º,
“a”, da CF.
A
titularidade dos direitos subjetivos fundamentais corresponde aos mesmos
efeitos de direitos fundamentais. Poder-se-ia dizer que postular um direito
fundamental seria o mesmo que reclamar sua concretização. Entretanto, referir o
direito subjetivo fundamental equivale a um efeito mais abrangente, como tutela
jurídica para preservação de direitos ou liberdades fundamentais violados.
Quando
descumpridos, os direitos fundamentais geram em favor dos seus destinatários,
como observa Gregório Robles: “autênticos direitos subjetivos que o ordenamento
jurídico distingue dos direitos subjetivos ordinários mediante um tratamento
normativo e processual privilegiado”. Nesse passo, essas regras atingem sua
máxima eficácia de concretização, sob a forma de típico direito subjetivo
fundamental em favor do contribuinte. Em qualquer ato do procedimento
administrativo, o titular de direitos subjetivos fundamentais pode fazer valer
sua pretensão de concretização de direitos e liberdades fundamentais.
É
sempre importante lembrar que os direitos e liberdades fundamentais possuem uma
dimensão positiva (eficácia asseguradora), mas também uma dimensão negativa
(eficácia de bloqueio), de típico direito de defesa do indivíduo contra
qualquer ato estatal contrário à concretização dos direitos, ao que se emprega
a teoria dos direitos subjetivos fundamentais. Não basta, pois, que a
Constituição consagre direitos se o esforço pela sua efetivação não se veja
coerente com os valores constitucionais.
Destarte,
para calibrações e balanceamentos necessários, com vistas à estabilidade do
sistema jurídico, cabível recorrer às “correções” sistêmicas disponíveis, a
saber:
(a)
para o controle de restrições infraconstitucionais a direitos e liberdades
desnecessárias ou gravosas, deve ser o emprego da proporcionalidade;
(b)
tratando-se de excesso do meio utilizado, como norma geral ou abstrata
infraconstitucional, mas também como norma individual e concreta, nos casos de
aplicação administrativa ou judicial do direito, cabe a proibição de excesso
ante qualquer outro método; e
(c)
nas hipóteses em que se mostre imperioso adequar o equilíbrio entre a situação
de fato e as normas jurídicas, a “norma de decisão” pode ser “construída”
segundo o parâmetro de aplicação da razoabilidade.
Assim,
fixamos nossa preferência por considerar a proporcionalidade como “princípio”
enquanto modalidade de garantia constitucional, ainda que implícita, que tem
por finalidade servir como controle de aplicação de restrições
infraconstitucionais a direitos e liberdades fundamentais. A implicitude não
prejudica a proporcionalidade na sua natureza normativa ou na eficácia jurídica
de princípio.[4]
No
plano estritamente constitucional, a razoabilidade é típica garantia contra o
arbítrio ou discriminações. Integra-se, pois, à hermenêutica constitucional,
enquanto garantia de estabilidade do próprio sistema.
Por
fim, à proibição de excesso cabe a função de servir como bloqueio axiológico
aos excessos oriundos do arbítrio, da escolha do meio mais gravoso ou de
qualquer lei ou ato administrativo ou judicial que supere os limites do
suportável, e suas repercussões em matéria tributária podem tanto decorrer de
normas gerais e abstratas quanto de normas individuais e concretas, nos
múltiplos atos de aplicação dos tributos. Decorre da necessidade de se
estabelecer até onde o ato estatal poderá ir sem que, com seu agir material ou
normativo, possa incorrer na afetação da esfera privada, mediante aplicação de
restrição ou extinção de direito, como a vedação de uso de efeito confiscatório
na aplicação dos tributos, dentre outros.
Em
conclusão, ao final do procedimento de concretização (aplicação), ter-se-á
sempre uma regra de conduta, apurada segundo os textos, regras e princípios que
concorrem para sua formação. Infelizmente, a dificuldade de compreender esse
modelo de aplicação das normas como “produto” de um “processo” (a partir da
enunciação do texto normativo) leva à diferenciação entre regras e princípios
como algo estanque, como se fosse possível a interpretação-construção das
“regras” separadamente de uma interpretação dos “princípios”. Uma fonte de
equívocos, à semelhança da hipótese de “ponderações de princípios” in
abstracto, como muitos defendem, sem dar-se conta da gravidade dos arbítrios
que sugerem, numa afirmação de preferências individuais. Numa síntese de
princípio-garantia, a segurança jurídica encontra-se enucleada na Constituição
com a força de um princípio-síntese, construído a partir do somatório de outros
princípios e garantias fundamentais, e cuja efetividade constitui-se no próprio
fundamento do Estado Democrático de Direito, como Estado dos direitos.
[1] Esta proposta foi desenvolvida na
nossa obra: Direito constitucional tributário e segurança jurídica:
metódica da segurança jurídica do Sistema Constitucional Tributário. 2ª Edição.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012;
[2] “Par conséquent, on ne peut faire
de la notion de justice la finalité du droit, sans ajouter que le ‘sien’ qui
apparaït dans la formule que nous venons de citer signifie ‘conforme aux
valeurs reconnues au sein d’un groupe social régi par le droit’” (GRZEGORCZYK,
Christophe. Théorie générale des valeurs et le droit: Essai sur les prémisses
axiologiques de la pensée juridique. Paris: LGDJ, 1982, p. 268).
[3] Robert Alexy considera que toda
norma ou é uma regra ou é um princípio e a distinção entre estes é qualitativa
e não de grau. Por isso, assim define: “Princípios são normas que ordenam que
algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades
jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos
de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus
variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende
somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O
âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras
colidentes” (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de
Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 90).
[4] Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A
eficácia dos direitos fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2009. p. 86
Heleno
Taveira Torres é advogado, professor e livre-docente de Direito
Tributário da Faculdade de Direito da USP, e membro do Comitê Executivo da
International Fiscal Association.
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