Doutores,
Válido
conferir o texto do Dr. Roberto Duque Estrada.
Abraço,
Os
limites constitucionais da tributação dos serviços
O
XVI Congresso Internacional de Direito Tributário organizado pela Associação
Brasileira de Direito Tributário (Abradt), em Belo Horizonte, foi uma vez mais
um estrondoso sucesso. “O Congresso bombou” era o que mais se ouvia falar nos
auditórios lotados do hotel onde o evento se realizou nos dias 19 a 21 de setembro sob a
presidência do professor e dileto amigo Eduardo Maneira, a coordenação
científica de nosso colega colunista Igor Mauler Santiago e as bênçãos
inspiradoras dos mestres Misabel Derzi e Sacha Calmon, presidentes honorários
da Abradt.
Tenho
imensa alegria em poder participar desse Congresso há muitos anos. No começo
fazendo parte da audiência, acompanhando o professor Alberto Xavier,
posteriormente, recebendo a honraria de ser conferencista. Em todas as ocasiões
voltou para casa um aprendiz intelectualmente enriquecido e muito, mas muito
mesmo, feliz pelos dias de convívio e camaradagem com colegas de todos os
cantos e recantos do Brasil, que se reúnem em BH, para um debate de altíssimo
nível, instigante, dialético, por vezes provocador, que nos semeia a reflexão e
a crítica.
Um
dos pontos altos do evento foi o “Talk Show” do dia 19 onde uma mesa composta
por personalidades do meio jurídico — Sacha Calmon, Antônio Carlos “Kakay” de
Almeida Castro, Marcelo Leonardo, Carlos Eduardo Caputo Bastos, Américo Lacombe
e Márcio Chaer —, mediada com maestria pela jornalista Renata Ceribelli,
debateu a respeito da influência da mídia nos julgamentos de grande
repercussão. Por razões óbvias o “julgamento de grande repercussão” mais
comentado foi o da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal (mensalão).
Mas
as questões tributárias não ficaram fora do “Talk Show”. Pelo contrário. Fez-se
uma dura crítica à tendência predominante de manchetes jornalísticas contrárias
às medidas defensivas tomadas pelos contribuintes junto ao Judiciário. Quando
um contribuinte vence uma disputa relevante, o tribunal “livrou a empresa tal
do pagamento do imposto”; quando o Judiciário decreta a inconstitucionalidade
de certa exigência, está “pondo em perigo a sobrevivência do Estado”, “faltarão
recursos — sempre cifras astronômicas — para pagamento do funcionalismo, para o
orçamento da saúde, da educação, da segurança, etc.”.
Nunca
se lê que “os contribuintes tiveram seus patrimônios preservados”, foram
“postos a salvo da sanha arrecadatória”, que “as garantias constitucionais
foram asseguradas” por que “o Estado havia excedido os limites das suas
competências”.
A
Coluna de hoje tem a ver com os limites constitucionais das competências
tributárias estatais. Abordaremos o problema no âmbito da tributação dos
serviços. O imposto sobre serviços (ISS) há alguns anos andava desprezado,
esquecido, mas, desde o advento da Lei Complementar 116/2003, teve sua
arrecadação substancialmente incrementada, por passar a ser efetivamente
cobrado pela generalidade dos municípios brasileiros.
A
importância do ISS na atualidade explica-se pelo crescimento exponencial do
setor na economia no país. A prestação de serviços nos dias de hoje é uma das
principais fontes de geração de riqueza e, conseguintemente, de arrecadação
tributária.
O
Congresso da Abradt, atento à relevância do tema, dedicou uma mesa
especialmente para debater a tributação dos serviços e outra para discutir os
conceitos de faturamento e de receita no âmbito dos tributos sobre o consumo
(PIS/Cofins, ICMS e ISS).
Um
dos pontos mais importantes que ressaltam em matéria de tributação de serviços
respeita precisamente à fixação do que se deve entender como “serviço” à luz do
nosso ordenamento constitucional para fins de tributação.
É
que a palavra “serviço” no sentido econômico amplo designa toda a
atividade que se insere no setor terciário da economia, abrangendo todo e
qualquer negócio jurídico que se refira a bens econômicos imateriais.
Essa
acepção econômica foi adotada pela legislação europeia do imposto sobre o valor
acrescentado (IVA) segundo a qual “entende-se por ‘prestação de serviços’
qualquer operação que não constitua uma entrega de bens” (artigo 24, 1 da
Diretiva 2006/112/CE).
A
razão do emprego de um método residual para considerar serviços toda
e qualquer operação que não consista numa entrega de bens é assim elucidada por
Xavier de Basto:
“O legislador comunitário guardou-se de dar uma definição positiva de prestação de serviços e optou por uma definição “residual” ou “negativa”: É prestação de serviços o que não for “entrega de bens”. Compreende-se o expediente. Um conceito “positivo” de prestação de serviços seria muito difícil de recortar, correndo-se sempre o risco de deixar a descoberto operações que relevam da atividade econômica a que o IVA se quer aplicar.
Com
o conceito residual, a incidência do IVA ganha uma vocação de universalidade de
aplicação que uma definição positiva de prestação de serviços dificilmente
conseguiria.”[1]
Ocorre
que ao contrário do que se passa na Europa, em que há apenas um tributo sobre
consumo — o IVA — com uma vocação de universalidade de aplicação, no
Brasil, a ordem constitucional vigente consagrou uma pluralidade de tributos
sobre o consumo, repartindo-os entre os diversos entes federativos de forma
fragmentada: À União cabe tributar pelo IPI os produtos industrializados e pelo
PIS/Cofins a receita ou o faturamento (= receitas das vendas de mercadorias e
serviços); aos estados, pelo ICMS, a circulação de mercadorias, os serviços de
comunicação, de transporte interestadual e intermunicipal; finalmente, aos municípios,
pelo ISS, os serviços de qualquer natureza, não compreendidos na competência
dos estados (art. 156, III, “a”).
Ao
adotar, sem ressalvas, um tipo tributário estrutural como “serviço”,
isto é, um tipo tributário que consiste em um conceito de atos ou negócios
jurídicos de Direito Privado sem alusão expressa aos efeitos econômicos por
eles produzidos[2], a norma
constitucional do artigo 156, III, “a” tornou mais restrita a margem de
liberdade do legislador e do intérprete, que estarão jungidos ao método
jurídicoda interpretação.
Como
nos ensina Canotilho a “(...) interpretação jurídica (= método jurídico) da
constituição em que o princípio da legalidade (= normatividade) constitucional
é fundamentalmente salvaguardado pela dupla relevância atribuída ao texto: (1)
ponto de partida para a tarefa de mediação ou captação de sentido por parte dos
concretizadores das normas constitucionais; (2) limite da tarefa de
interpretação, pois a função do intérprete será a de desvendar o sentido do
texto sem ir para além, e muito menos contra, o teor literal do preceito”.[3]
A
exigência de que a interpretação se faça pelo método jurídico estampa-se,
com todas as letras no Direito positivo brasileiro, no artigo 110 do Código
Tributário Nacional (CTN), segundo o qual “a lei tributária não pode alterar a
definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito
privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal,
pelas Constituições dos estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou
dos municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.
Referido
preceito é uma inerência do princípio da legalidade, trata-se, nos dizeres do
ministro Marco Aurélio, de “norma pedagógica”[4] à qual o
Supremo Tribunal Federal reconhece uma dupla função de garantia: (i)
assegura para os entes políticos o respeito à repartição de competências
tributárias formulada pela Constituição Federação (função de garantia
horizontal); e (ii) assegura para os particulares que os legisladores
infraconstitucionais não desvirtuarão o núcleo dos conceitos constitucionais
dos fatos geradores (função de garantia vertical).
E
por que dizemos que é uma inerência do princípio da legalidade? Simplesmente
porque a garantia da legalidade da tributação não se basta no plano formal,
antes repudia toda e qualquer extensão ainda que oblíqua de poderes tributários
para além das fronteiras rigidamente demarcadas. Tal garantia o artigo 110 do
CTN assegura com uma ordem de cumprimento dos mandamentos constitucionais, como
argutamente observa a professora Misabel Derzi:
“O art. 110, implicitamente, somente dita o comando: obedeça-se à Constituição. Mas não dispõe sobre o óbvio e o inútil. Parte do pressuposto de que os nomes não são uma definição, apenas referem o objeto, cuja conotação (sentido preciso) somente vem traçada em contexto mais amplo. Ele determina, assim, nos caso em que o nome se presta às relevantes funções de definir ou limitar competências, a cristalização da denotação e da conotação completa que tenha segundo os moldes do campo jurídico privado de onde foi extraído”.[5]
Estando
jungidos ao Direito Privado, não podem nem o legislador infraconstitucional,
muito menos o intérprete, extravasarem as fronteiras do conceito jurídico, para
tributar pelo ISS realidades que não revistam a natureza de uma prestação de
serviços no Direito Civil.
E
o que é “serviço” no Direito Civil?
Na
definição analítica de Orlando Gomes é o “contrato mediante o qual uma pessoa
se obriga a prestar um serviço a outra, eventualmente, em troca de determinada
remuneração, executando-os com independência técnica e sem subordinação
hierárquica”.[6]
Na
definição sintética de Pontes de Miranda “serviço é qualquer prestação de
fazer”[7].
Assim,
apenas prestações de fazer poderão ser definidas pela lei
complementar a que se refere o artigo 156, III, “a” — atualmente a Lei
Complementar 116/2003 — como fatos geradores do ISS.
A
deliberada opção constitucional pelo conceito jurídico de serviços em oposição ao
conceito econômico explica existência de espaços vazios de tributação, isto é,
certos negócios jurídicos que, na acepção adotada na legislação europeia,
seriam tributáveis pelo imposto de consumo (IVA), estão fora do âmbito de
incidência do ISS, como sucede, por exemplo, como já, aliás, reconhecido pelo
Supremo Tribunal Federal, com a locação de bens móveis (RE 116.121-3/SP).
Não
cabe ao intérprete, ao aplicador da lei e muito menos ao legislador
infraconstitucional preencherem esses ditos “espaços vazios”. Se os há é porque
o modelo fragmentário e vinculado à definição jurídica dos tipos
constitucionais que foi adotado no Brasil para a tributação do consumo a isso
conduz.
Melhor
que o espaço vazio seja preenchido pela liberdade constitucionalmente assegurada
da ausência de tributação que por uma tributação globalizante e totalitária,
flagrantemente inconstitucional.
[1]“A tributação do consumo e a sua
coordenação internacional: lições sobre a harmonização fiscal na União
Europeia”, Lisboa, Centro de Estudos Fiscais, 1991.
[2] Em contraposição aos tipos
funcionais em que a hipótese da norma tributária é caracterizada pela
obtenção de certo efeito econômico, independentemente da natureza jurídica dos
atos ou negócios que para ele concorrem (p.ex. renda). Cfr. Alberto Xavier,
“Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva”, São Paulo, 2001, 35
ss.
Roberto
Duque Estrada é advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília.
Sócio do escritório Xavier Bragança Advogados.
Fonte:
Revista Consultor Jurídico, 26 de setembro de 2012
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