Doutores,
Tentando
entender melhor a aplicação do ISS, trazemos novamente os ensinamentos do Dr. Gustavo
Brigagão, agora falando sobre a não incidência deste tributo na importação de
serviços.
Abraço,
ISS
não pode incidir sobre importação de serviços
Objetivando
evitar que produtos importados recebessem tratamento fiscal privilegiado
relativamente aos produzidos no país, tornando-os, assim, menos competitivos,
sempre buscou o legislador brasileiro fazer com que as importações sofressem as
mesmas incidências tributárias que oneravam as operações internas.
Essa
“lógica” fundamentou, por exemplo, a incidência do Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI), do antigo Imposto sobre Circulação de Mercadorias
(ICM), do atual Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e do
PIS/Cofins (PIS/Cofins-Importação), na importação de bens e serviços.
Provavelmente,
foi também com esse objetivo que, por meio da Lei Complementar (LC) 116, de 31
de julho de 2003, estabeleceu-se a incidência do Imposto Sobre Serviços (ISS)
no "serviço proveniente do exterior do país ou cuja prestação se tenha
iniciado no exterior do país".
Essa
incidência não se coaduna, contudo, com os princípios constitucionais que regem
a tributação de serviços na legislação brasileira, e quatro são as razões que
levam a essa conclusão.
A
primeira delas é que a Constituição Federal não prevê a possibilidade de o ISS
recair sobre as importações, como faz relativamente aos demais tributos que as
oneram.
De
fato, sempre que a Constituição atribuiu competência aos entes federativos para
que determinado tributo recaísse sobre as importações, ela o fez expressamente.
Assim foi com o Imposto de Importação, com o antigo ICM, com o atual ICMS, com
a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) incidente sobre a
importação de combustíveis e com o PIS/Cofins-Importação.
Como
todos se lembram, o antigo ICM, previsto no artigo 24, inciso II, da
Constituição de 1967, não incidia sobre a importação de mercadorias, mas tão
somente sobre operações relativas a circulação de mercadorias realizadas no
território nacional. Para que o imposto pudesse incidir sobre importações, o
artigo 23, parágrafo 11, da Emenda Constitucional (EC) 1, de 17 de outubro de
1969, referiu-se expressamente às entradas de mercadorias importadas do
exterior (ainda que se tratasse de bens destinados a consumo ou ativo fixo
do estabelecimento), elencando-as entre as situações que permitiriam tal
incidência.
A
Constituição vigente (CF), ao incluir no campo de incidência do ICMS as
prestações de serviços de transporte (intermunicipal e interestadual) e de
comunicação, fez expressa referência a que o imposto incidiria “também” sobre
operações e prestações iniciadas no exterior (art. 155, inciso II, da CF).
Grifei a palavra “também” para acentuar o fato de que o legislador
constitucional vê a incidência na importação, não como algo que decorra naturalmente
da incidência já prevista para as operações internas, mas como algo que se
acrescenta à competência estadual, ampliando-a de forma específica.
Também
se deve a disposição expressa da CF a incidência do ICMS na entrada de
mercadoria importada do exterior, ainda que se trate de bem destinado a consumo
ou ativo fixo do estabelecimento (art. 155, inciso II, § 2º, inciso IX, alínea
a).
E,
para que esse imposto pudesse incidir sobre as entradas de mercadorias
importadas por pessoas físicas e jurídicas não contribuintes, foi necessário
que a EC 33, de 11 de dezembro de 2001, alterasse a redação do artigo 155,
inciso II, parágrafo 2º, inciso IX, alínea “a”, e estabelecesse expressamente
que essa incidência se daria naquelas circunstâncias. Note-se que, com base na
redação anterior à emenda, essa pretensão foi rechaçada pelo Supremo Tribunal
Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 2.030.759-DF, de
que foi relator o ministro Maurício Corrêa, Plenário (Revista Trimestral de
Jurisprudência – RTJ 171, p. 684), exatamente porque a CF não atribuía
competência aos estados para tanto.
Da
mesma forma, foi necessário emendar-se o texto da CF: (i) pela EC 33/01, que
alterou a redação do artigo 149, de forma a incluir o parágrafo 2º, incisos I e
II, para que se admitisse a incidência da CIDE na importação de petróleo
(inclusive seus derivados), de gás natural (inclusive seus derivados) e de
álcool combustível; e (ii) pela EC 42, de 19 de dezembro de 2003, que alterou a
redação do artigo 149, parágrafo 2º, inciso II, e incluiu no artigo 195 o
inciso IV, para que se pudesse tributar, pela CIDE e pelas CS, a importação de
produtos estrangeiros ou de serviços.
É
verdade que não há disposição constitucional que expressamente preveja a
incidência do IPI na importação, mas isso se deve ao fato de que esse tributo
não incide sobre atividades ou operações propriamente ditas, mas sobre os
produtos industrializados em si, sendo irrelevante a sua origem, se nacional ou
estrangeira.
Diversamente,
nos tributos que têm por objeto atividades ou operações, como é o caso do ISS,
é necessária expressa previsão constitucional para que as originadas ou
provenientes do exterior se incluam no respectivo campo de incidência.
Quanto
ao ISS, nada há na Constituição que disponha sobre a possibilidade de ele
incidir sobre a importação de serviços. Logo, regra infraconstitucional que a
crie configura extrapolação da competência constitucionalmente outorgada aos
municípios, o que é inadmissível.
A
segunda razão (entre as mencionadas no início deste artigo) é a de que a LC
116/03 determina que o município competente para a cobrança do ISS na
importação do serviço é aquele em que localizado o estabelecimento beneficiário
(tomador) do respectivo serviço, mas não dirime eventuais conflitos de competência
na hipótese em que houver diversos estabelecimentos tomadores de um
mesmo e único serviço, localizados em mais de um município.
Isso
ocorreria, por exemplo, no treinamento via internet de equipe de vendedores
vinculados a filiais de determinada empresa localizadas em municípios diversos.
Note-se que, nessa hipótese, haveria um único serviço (treinamento), que,
apesar de contratado por uma única pessoa jurídica, seria prestado
simultaneamente a todos os seus diversos estabelecimentos (filiais) localizados
em municípios diversos. Todos eles, com fundamento no que dispõe a LC
116/03, se julgariam competentes para fazer incidir o ISS sobre o serviço
prestado, apesar de o fato gerador ser um só.
Como
já tive oportunidade de demonstrar em outras ocasiões, e nessa mesma coluna,
situação muito semelhante foi a julgada pelo plenário do Supremo Tribunal
Federal (STF), quando afastou a incidência do Adicional do Imposto sobre a
Renda (ADIR) por não haver lei complementar que indicasse as regras que solucionariam
eventuais conflitos de competência decorrentes da aplicação das leis estaduais
que o instituíssem, e também quando afastou a incidência do ICMS na prestação
de serviço de transporte aéreo de pessoas.
A
ausência dessa lei complementar (que dispusesse como seriam solucionados os
conflitos de competência) impediu a incidência genérica daqueles tributos, e
não somente nas hipóteses em que ficassem configurados os referidos conflitos.
O mesmo deve ocorrer com o ISS sobre serviços importados.
A
terceira razão que impede a incidência do ISS sobre a importação de serviços é
que a LC 116/03 não definiu quem seria o contribuinte do imposto nessa
hipótese. A única definição existente é a que se refere aos serviços que são
prestados internamente, e, nessa hipótese, o contribuinte é o prestador do
serviço.
Na
importação de serviços, o seu prestador está localizado no exterior, não
mantendo, portanto, vínculo jurídico com qualquer município brasileiro.
O
tomador (importador) do serviço, esse sim, deveria ter sido indicado
contribuinte (como faz a legislação do Imposto de Importação, ICMS, Cide e
PIS/Cofins–Importação) por ser o único que mantém relação pessoal e direta com
o fato gerador do imposto e que está apto a integrar a necessária relação
jurídico-tributária com o município.
A
ausência dessa determinação importa em descumprimento do nosso sistema
tributário constitucional vigente, que impõe a definição do contribuinte do
tributo como pré-requisito para sua exigibilidade.
Note-se
que a LC 116/03 não supre esse requisito constitucional ao eleger como
responsável pelo pagamento do ISS "o tomador ou intermediário de serviço
proveniente do exterior do país", pois, se não há contribuinte, como visto
acima, não há que se falar em responsabilidade tributária de quem quer que
seja.
A
quarta e última razão é que serviços prestados no exterior não podem ser
considerados inseridos na competência dos municípios para fazer incidir o ISS.
E,
chega-se a essa conclusão, não só pela jurisprudência do STJ que prevalecia até
recentemente e que consagrava o principio da territorialidade (segundo o qual o
ISS deve, em regra, ser recolhido em favor do município onde o serviço é
prestado), como também pelo precedente daquele mesmo Tribunal, segundo o qual
não há exportação de serviço nas situações em que ele é prestado em
território nacional, ainda que para beneficiário no exterior (Agravo Regimental
no Resp 956.513, ministro Herman Benjamim, Segunda Turma, DJe 03.09.2009).
Ora,
o vento há que soprar para ambos os lados. Se não há exportação de
serviços nesses casos, também não há que se falar em importação de
serviços na situação inversa, em que os serviços são prestados no
exterior, mas os respectivos beneficiários estão aqui localizados.
Perguntar-se-ia,
então, o ilustre leitor: Qual o tratamento a ser dado à situação em que o
prestador, estabelecido no exterior, prestasse o serviço em território
nacional? A resposta a essa pergunta dependeria, a meu ver, do “grau de
presença” no território brasileiro que se pudesse provar relativamente a esse
prestador.
Se
tal grau fosse suficiente para configurar a existência dos pressupostos
necessários e suficientes à configuração de estabelecimento, nos termos do
artigo 4o da LC 116/03 (existência de unidade profissional ou econômica,
que, de forma temporária ou definitiva, desenvolva a atividade de prestar
serviços), entendo que a atividade deveria ser regularmente tributada, não
porque estaríamos nessa hipótese diante de uma importação de serviços, mas
porque, para fins de ISS, haveria um “estabelecimento” aqui localizado que
estaria prestando serviços em território nacional.
Em
outras palavras, seria um serviço como qualquer outro, prestado por
estabelecimento localizado no território brasileiro.
Se,
por outro lado, o referido “grau de presença” não fosse suficiente para
configurar “estabelecimento’, estaríamos diante de uma legítima importação de
serviços, que não poderia estar sujeita à incidência do ISS por todos os
motivos analisados neste artigo.
Em
conclusão, apesar do salutar objetivo de evitar-se que importações recebam
tratamento fiscal privilegiado relativamente às operações internas, parece-me
não haver fundamento constitucional para que seja tributada pelo ISS a
denominada importação de serviços.
Gustavo
Brigagão é sócio do escritório Ulhôa Canto, secretário-geral da ABDF
(Associação Brasileira de Direito Financeiro), diretor do Centro de Estudos das
Sociedades de Advogados (Cesa) e presidente da Câmara Britânica do Rio de
Janeiro.
Fonte:
Revista Consultor Jurídico, 17 de outubro de 2012
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