A
advocacia tem dessas... Segue-se um entendimento que por vezes é tido como
consolidado perante os Tribunais. Contudo, o risco da surpresa na modificação
do entendimento é latente, causando prejuízo aos profissionais que atuam na área.
Isso
tudo sem contar o cliente, que não vai entender a mudança de posicionamento do
julgado.
Confiram
o artigo abaixo escrito pelo Dr. Roberto Estrada.
Abraço,
Não
há segurança jurídica sem decisões estáveis
Qualquer
consultor em matéria tributária, entre dezembro de 2002 e outubro de 2009,
quando indagado por clientes se uma pessoa jurídica, no período base de sua
extinção, em virtude de cisão, fusão ou incorporação, poderia compensar
integralmente o saldo de prejuízos fiscais acumulados, isto é, sem observar o
limite de 30% de redução do lucro líquido, teria respondido afirmativamente à
questão e classificado como muito remota a probabilidade de perda em eventual
discussão administrativa.
O
consultor tributário fundamentaria sua resposta na jurisprudência consolidada
da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), inaugurada pelo Acórdão
CSRF/01-04.258, de 1º de dezembro de 2002, da relatoria do conselheiro Celso
Alves Feitosa, assim ementado:
“Compensação
prejuízo fiscal e base negativa — No caso de incorporação, uma vez vedada a
transferência de saldos negativos, não há impedimento legal para estabelecer
limitação, diante do encerramento da empresa incorporada.”
Na
sequência de referido julgado, em que ficaram vencidos apenas dois conselheiros[1], foi
proferido,por unanimidade, o Acórdão CSRF/01-05.100, de 19 de outubro de 2004,
da relatoria do conselheiro José Henrique Longo, com a seguinte ementa que, de
tão categórica, é quase uma súmula:
“IRPJ
— Compensação de prejuízo — Limite de 30% — Empresa incorporada — À
empresa extinta por incorporação não se aplica o limite de 30% do lucro líquido
na compensação do prejuízo fiscal.”
O
voto do relator é elucidativo quanto aos fundamentos jurídicos e ao grau
de consolidação da linha de orientação em causa no âmbito do Conselho de
Contribuintes:
“Em
face da incorporação e da impossibilidade de compensar posteriormente o saldo
de prejuízo na incorporadora, não havia outra opção senão a de compensar
integralmente seu prejuízo.
Esse raciocínio já está pacificado neste Conselho de Contribuintes. A norma (Lei 9.095/95, art. 15), ao impor a “trava” na compensação, não pretendeu tolher o direito do contribuinte de não recolher IRPJ sobre a recuperação do capital, correspondente ao lucro após prejuízo. Pretendeu sim uma arrecadação mínima, se apurado lucro líquido, com a limitação de utilização do prejuízo acumulado. Em contrapartida, extinguiu o prazo de aproveitamento do prejuízo (de 04 anos), para que o contribuinte pudesse compensar integralmente seu saldo de prejuízo fiscal, ainda que em muitos anos.
Esse raciocínio já está pacificado neste Conselho de Contribuintes. A norma (Lei 9.095/95, art. 15), ao impor a “trava” na compensação, não pretendeu tolher o direito do contribuinte de não recolher IRPJ sobre a recuperação do capital, correspondente ao lucro após prejuízo. Pretendeu sim uma arrecadação mínima, se apurado lucro líquido, com a limitação de utilização do prejuízo acumulado. Em contrapartida, extinguiu o prazo de aproveitamento do prejuízo (de 04 anos), para que o contribuinte pudesse compensar integralmente seu saldo de prejuízo fiscal, ainda que em muitos anos.
Desse
modo, e considerando que à empresa incorporadora é vedado o aproveitamento do
saldo de prejuízo fiscal da empresa incorporada (Decreto-lei 2.341/87, arts. 32
e 33), deixa de existir a premissa de inexistência de limitação de
aproveitamento do prejuízo com os lucros futuros, o que compromete a
legitimidade da trava do prejuízo.
A Câmara Superior de Recursos Fiscais pronunciou-se a respeito dessa matéria no acórdão CSRF/01-04.258, no sentido de permitir o aproveitamento integral do prejuízo fiscal, na hipótese tal qual a sob exame — último período base por incorporação.”
A Câmara Superior de Recursos Fiscais pronunciou-se a respeito dessa matéria no acórdão CSRF/01-04.258, no sentido de permitir o aproveitamento integral do prejuízo fiscal, na hipótese tal qual a sob exame — último período base por incorporação.”
Sete
anos depois, no entanto, o consultor tributário e seus clientes são golpeados
por uma súbita e imprevisível mudança da linha de orientação da CSRF: o que era
pacífico tornou-se tormentoso; o risco de perda, que era remoto, passou a ser
provável; naquilo em que se confiava não se pode mais acreditar; da
tranquilidade passou-se ao temor.
A
reviravolta ocorreu no dia 2 de outubro de 2009, quando a 1ª Turma da CSRF,
pelo voto de qualidade, proferiu o Acórdão 9101-00.401 (apenas formalizado em
17 de agosto de 2010), decidindo “(...) que o limite de 30% para compensação de
prejuízos de períodos anteriores também é aplicável nos ajustes ao lucro real
do balanço de encerramento das atividades da empresa (....)”.
A
modificação da linha orientação que se tornara reiterada, pacífica, podendo-se
chamar de tradicional, não se nos afigura razoável do ponto de vista jurídico
nem, muito menos, desejável do ponto de vista institucional.
Não
se nos afigura razoável do ponto de vista jurídico porque a linha de orientação
tradicionalmente adotada pela CSRF se baseava em uma interpretação equilibrada
e ponderada das normas referentes à compensação de prejuízos fiscais.
Com
efeito, como se lê da percuciente síntese formulada no voto do conselheiro José
Henrique Longo, a linha de orientação tradicional assenta no entendimento
segundo o qual a norma especial do artigo 33 do Decreto-lei 2.341/87 — que
excepciona os saldos de prejuízos fiscais acumulados da sucessão a título
universal que é característica própria das operações de fusão, cisão e
incorporação de sociedades (arts. 227, 228 e 229, § 1º da Lei n.º 6.404/76) — é
incompatível com as finalidades doregime geral previsto nas Leis 8.981/95
e 9.065/95: a garantia de uma arrecadação mínima pela aplicação do limite de
30%, sem retirar do contribuinte o direito de compensar integralmente seus
prejuízos ao longo dos anos.[2]
Entendeu-se
que a aplicação cumulativa das normas geral (limite de 30%) e especial
(inexistência de sucessão no saldo de prejuízos fiscais em operações de
reorganização societária) aos casos de extinção da pessoa jurídica
corresponderia à desconsideração definitiva — e já não mais
temporária — da parcela dos prejuízos não compensada (70%) pela impossibilidade
de sua compensação futura.
A
interpretação tradicional da CSRF harmonizava as normas em questão ao definir
que não poderia subsistir, simultaneamente, uma dupla limitação: a
limitação quantitativa de 30% ficaria afastada naqueles casos em que fosse
aplicável a limitação contida no artigo 33 do Decreto-lei 2.341/87.
Sem
pretende desmerecer os argumentos jurídicos em sentido contrário, não se pode
perder de vista que aqueles que sustentavam a linha de orientação tradicional
foram sempre tidos como mais robustos e acolhidos, se não pela unanimidade, por
uma maioria expressiva dos membros do Conselho de Contribuintes, tanto que
vinham prevalecendo até o malfadado julgamento da CSRF de 2 de outubro de 2009.
A
mudança de orientação, da forma como se deu, sete anos depois e pelo recurso ao
voto de qualidade, não é desejável do ponto de vista institucional. Abalada
fica a confiança que os particulares depositaram na CSRF/Conselho de
Contribuintes (atual Carf) que, sem qualquer sombra de dúvidas, é um órgão de
Estado pluralista e democrático, respeitado e admirado pelos operadores do
Direito Tributário.
Ora,
nunca é demais lembrar que a CSRF é o órgão máximo da administração judicante,
que uniformiza a jurisprudência e dita a interpretação da lei fiscal. A CSRF é
maior, mas muito maior, que as individualidades que a compõe e não pode mudar
sua jurisprudência ao sabor do vento que sopra, para atender desígnios sabe-se
lá de onde, aproveitando-se de um quórum de oportunidade.
Sua
interpretação remansosa e pacífica da lei tributária, indiscutivelmente pública
e seguida pelos particulares, representa uma prática reiterada das
autoridades administrativas. Assim sendo, a súbita reversão da orientação
tradicional — no mínimo — não poderá importar na aplicação de penalidades, na
imposição de juros moratórios, nem na atualização do valor monetário da base de
cálculo do tributo, ex vi do parágrafo único do artigo 100 do Código
Tributário Nacional (CTN).
Com
efeito, foi exatamente para proteger o contribuinte da aplicação, de surpresa,
de novas medidas que o CTN veio estabelecer no parágrafo único do artigo 100
que “a observância das normas referidas neste artigo exclui a imposição de
penalidade, a cobrança de juros de mora e a atualização do valor monetário da
base de cálculo do tributo”.
A
dispensa da exigência de penalidade justifica-se facilmente pelo fato de o
contribuinte ter cumprido a lei tal como interpretada pelo órgão máximo da
Administração judicante. A dispensa da exigência dos juros de mora reside
também na circunstância de o contribuinte ter cumprido a sua obrigação nos
precisos termos da mesma lei, pelo que de mora não se pode falar. Enfim, a não
exigência de atualização de valor monetário da base de cálculo funda-se nos
princípios fundamentais do Estado de Direito, entre os quais o da proteção da
confiança e da previsibilidade da ação estatal, contrários a pretensões
patrimoniais exigidas de surpresa.
O
alcance do parágrafo único do artigo 100 do CTN foi objeto de aprofundada
análise no clássicoDireito Tributário Brasileiro de Aliomar Baleeiro,
revisto e complementado por Misabel Abreu Derzi:
“São
vários os dispositivos do Código que consagram a irretroatividade dos atos
administrativos favoráveis ao contribuinte (arts. 100, parágrafo único, art.
105, art. 146 e art. 156, IX). Um deles, o art. 100, a rigor, admite a
retroação, mas atenua-lhe os efeitos. (....)
“O
parágrafo único do artigo 100 fixa a norma segundo a qual a observância pelos
contribuintes dos atos normativos referidos poderá beneficiá-los (jamais criar
para eles encargos novos). Na hipótese de a Administração ter errado na
interpretação da lei ou mudado de orientação, substituindo-a por outra, os
contribuintes ficam obrigados, por força do princípio da legalidade (obrigação ex
lege), ao pagamento do tributo, mas sem os consectários dos juros, das
multas e da correção monetária.”[3]
Sacha
Calmon Navarro Coelho faz entroncar a regra do parágrafo único do artigo 100 do
CTN no princípio da proteção da confiança dos atos administrativos em matéria
fiscal.
“Para
proteger os contribuintes da inconstância das orientações baixadas pela
Administração fiscal, mediante os variados instrumentos de que dispõe, foi
redigido, com grande sabedoria, o art. 100 do CTN e seu importantíssimo
parágrafo único, de incomensurável serventia na clínica fiscal.
“Noutras
palavras, se o contribuinte age de conformidade com a orientação do Fisco,
acatando os atos administrativos normativos mencionados no art. 100, pouco importando
a nomenclatura oficial, fica totalmente livre de multas, juros e correção
monetária. (...).” [4]
Desejamos
sinceramente que a CSRF corrija o rumo e retorne à posição tradicional nos
próximos julgamentos sobre a matéria, fazendo do Acórdão 9101-00.401 um
incidente isolado, um erro do passado. É chegada a hora de recuperar a
confiança dos contribuintes na estabilidade das suas decisões.
Mas,
se assim não o fizer, que, ao menos, reconheça aos contribuintes que, de
boa-fé, acreditaram nas suas decisões sobre a matéria o direito à aplicação da
regra do parágrafo único do artigo 100 do CTN, cancelando as exigências de
multa, juros e correção monetária.
Isso
é o mínimo que se espera de um órgão de justiça fiscal.
[1] Como se lê do Acórdão: “(...) Por
maioria de votos, NEGAR provimento ao recurso, nos termos do relatório e voto
que passam a integrar o presente julgado. Vencidos os Conselheiros Cândido
Rodrigues Neuber e Verinaldo Henrique da Silva”.
[2] Este racional está estampado na
Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 998/95, reedição das Medidas
Provisórias 947/95 e 972/95, posteriormente convertida na Lei nº 9.065/95:
“Arts 15 e 16 do Projeto: decorrem de Emenda do relator, para restabelecer o
direito à compensação de prejuízos, embora com as limitações impostas pela
Medida Provisória nº 812/94 (Lei nº 8.981/95). Ocorre hojevacatio legis em
relação à matéria. A limitação de 30% garante uma parcela expressiva da
arrecadação, sem retirar do contribuinte o direito de compensar, até
integralmente, num mesmo ato, se essa compensação não ultrapassar o valor do
resultado positivo”.
Roberto
Duque Estrada é advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília.
Sócio do escritório Xavier Bragança Advogados.
Fonte:
Revista Consultor Jurídico, 21 de novembro de 2012
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