Me
propus a fazer iniciar o mestrado nesse ano de 2013... Tarefa ardua...
Como
tema de dissertação (preliminar, pois as ideias mudam constantemente quando se
está na academia. Impressionante como nos fascinamos com as novidades) estou
querendo escrever sobre a justiça fiscal e a capacidade contributiva, com foco
nas Contribuições Sociais.
Acabo
de me deparar com o texto do Dr. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy justamente
falando sobre o conceito da justiça fiscal, e quero dividir com vocês.
Confiram,
por demais interessante a leitura.
Abraço,
O
conceito de justiça fiscal na tradição ocidental
Proponho
que se conceitue justiça fiscal como conteúdo realisticamente
aferível que alcance todas as concepções de Justiça que a tradição ocidental
nos coloca, devendo-se levar em conta, também, os benefícios e os custos da
vida social.
A justiça
fiscal é justiça de algum modo comutativa, distributiva, repressiva,
social, legal e equitativa. E ainda que justiça, em sentido amplo, seja
conceito metafísico, oponível, por exemplo, à ideia de eficiência, que é
percepção nuclear de outro campo das ciências sociais aplicadas — refiro-me à
economia — pode-se transitar em torno de uma ideia de justiça que contenha alguma
objetividade. É o que seria necessário para uma conceituação prospectiva de justiça
social.
A justiça
fiscal sugere comutatividade, na medida (tanto quanto possível,
exata) que se deva extrair de cada um o quanto efetivamente devido. Refiro-me,
evidentemente, à taxa de extração fiscal, que fixa o montante que o poder
tributante está autorizado a retirar de quem recolhe tributos, direta ou
indiretamente. Isto é, mediante cobrança de tributos ou por intermédio de
políticas inflacionárias.
Por
outro lado, porque a justiça comutativa demanda uma troca perfeita,
em termos aristotélicos, deve-se ajustar o conceito à entrega de bens e de
serviços, por parte do Estado, a menos que se assuma — definitivamente — que o
modelo que se conhece no Brasil contemple apenas fórmulas de transferência de
renda.
A justiça
fiscal sugere também distributividade porque engendra a
distribuição de encargos entre todo o corpo social. Reconheça-se, no entanto,
que há sobrecarga de quem economicamente menos portentoso, de onde o princípio
da regressividade. Critérios ad hoc de seletividade não enfrentam o
problema do outorga de maior encargo relativo e real para os mais pobres, o que
justifica, entre outros, retórica constitucional que dispõe que, sempre que
possível, os impostos devam ter caráter pessoal e que seriam graduados de
acordo com a capacidade econômica do contribuinte.
O
critério é relacional. Por óbvio, deve ser sempre aferido em relação a alguma
coisa ou a alguém; busca-se realidade proporcional e simétrica entre situações tributáveis
e sujeitos passivos.
A justiça
fiscal sugere ainda repressividade porque o não recolhimento
voluntário de tributos, de todos exigidos, demanda enérgica atuação do Estado.
Na hipótese de não recolhimento voluntário das obrigações tributárias há dois
efeitos mefistofelicamente malignos. Refiro-me a desvios de concorrência e ao
abuso do free-riding.
Nesse
último caso o inadimplente se vale de serviços públicos sem ter contribuído,
enquanto que naquela primeira hipótese o devedor pode praticar preços mais
atraentes, porque expurga do quanto cobra a carga fiscal. Nas duas hipóteses,
desvios de concorrência e free-riding, há necessidade de intervenção
penal.
É esse
o nó górdio que desafia qualquer reflexão a propósito da suspensão da
exigibilidade do crédito tributário (e do interesse do Estado na persecução
penal) nas hipóteses de adesão do réu a parcelamento, com recolhimento de
fragmento da dívida. A justiça fiscal é uma justiça social porque
promove socorro mútuo. A questão pode-se dimensionar de modo superlativo na
gestão do sistema previdenciário, em sua quantificação atuarial, pagando-se o
pensionista com recursos coletados do servidor ativo. Critérios de
progressividade (comuns na tributação sobre a renda) podem fomentar mecanismos
de cooperação e de realização de justiça social.
A justiça
fiscal é uma justiça legal (locução nada eufônica que decorre da
falta de traduzibilidade delegal justice) justamente porque informada pela
reserva legal e pelo devido processo, em sua quantificação substantiva.
Recolhem-se tributos porque a lei assim o determina. Discute-se o recolhimento
do tributo, judicial ou administrativamente, nos exatos termos da lei e dos
regulamentos. Tributação é matéria de lei, em sentido estrito.
A justiça
fiscal é uma justiça equitativa, numa dimensão anunciada por John
Rawls e recentemente retomada por Amartya Sen, no sentido de que uma imaginária
razão pública deve nortear a formulação de nossas instituições para que estas
possam — substancialmente — se revelarem como efetivamente justas.
A justiça
fiscal seria, assim, um combinado de justiças distributivas, comutativas,
repressivas, equitativas e legais. Seu exato termo médio consistiria na
adequada distribuição de encargos, com a não menos adequada distribuição de
resultados, informando instituições justas, punindo os desviantes, sempre, no
também não menos importante contexto de leis devidamente discutidas e
aprovadas. Justiça fiscal é indicativo de funcionamento de
instituições democráticas.
Nesse
último sentido, legal, acrescento que a conceituação de justiça fiscal é
também um problema de legística — isto é, de estudo de qualidade de leis. A justiça
fiscal exige normas que tenham qualidade, que não exijam altíssimos custos
de aquiescência, tomando-se estes últimos pelo quanto se gasta para se cumprir
as determinações das autoridades fazendárias. Retoma-se (e reformula-se) a
clássica lição do moralista e economista escocês defensor do autointeresse como
fator de crescimento econômico, Adam Smith, para quem o bom tributo seria
aquele cujo recolhimento subtraísse recursos materiais, e não tempo e paciência
de quem paga...
Um
conceito de justiça fiscal exige, como premissa, que se defina que
tipo de Estado se quer. Com um PIB de US$ 15 trilhões, os Estados Unidos da
América têm carga fiscal de 28,40 % deste valor. A China, com PIB em torno de
quase US$ 7 trilhões, contempla carga fiscal de 20% do referido valor. O Japão
apresenta PIB em torno de um pouco mais de US$ 5 trilhões, com carga de 28,10%.
A Alemanha apresenta PIB de pouco mais de US$ 3 trilhões, com carga muito
maior, que chega a 39,20% do aludido PIB.
A
França, com PIB de US$ 2,7 trilhões matiza carga tributária mais elevada ainda,
que chega a 42,30%. A Índia, com PIB de cerca de US$ 1,8 trilhão, apresenta
carga bem mais baixa, que gira em torno de 12,1%. O Brasil, em 2011, teria
conhecido uma carga fiscal de 34,70 % de um PIB que ultrapassou US$ 2 trilhões.
A
dependência do cidadão brasileiro para com o Estado é muito maior no Brasil do
que é nos Estados Unidos. E é também superlativamente maior do que a
dependência direta do chinês para com a China ou do indiano para com a Índia.
Pode-se argumentar que uma ampliação de programas de transferência de rendas
via tributação pode ter elevado a carga fiscal de 30,03 % do PIB brasileiro no
ano de 2000 para os patamares atuais.
Por
outro lado, oportuna a comparação de números de crescimento do PIB (ainda que
não reflitam, de fato, o nível de vida da população de um país, como argumenta
Amartia Sen), para efeitos de apreensão de um conceito de justiça fiscal. Se
em 2012 a China pode crescer 8,2%, a Índia, 6,3% e os Estados Unidos apenas
2,0%, as diferentes cargas poderiam justificar os quase 35% do Brasil em
relação a um crescimento (otimista) de 3,9%. Como?
Justifico.
Programas de governo que impulsionam o país exigem recursos muito expressivos.
Apenas na segunda versão do Programa de Aceleração do Crescimento (o PAC-2),
concluiu-se 17,9% das ações em 2011, com o gasto aproximado de R$ 127 bilhões.
Rodovias, aeroportos e portos teriam tomado R$ 6,1 bilhões. Geração e
transmissão de energia, exploração e produção de óleo e gás, refino e
petroquímica, gás natural e indústria naval teriam absorvido R$ 33,8 bilhões.
Saneamento e prevenção de áreas de risco teriam exigido investimento de mais de
R$ 100 milhões.
O
programa Minha Casa Minha Vida, relativo à contratação de unidades
habitacionais, financiamento, urbanização e cuidados com assentamentos
precários teria exigido R$ 85,1 bilhões. Sistemas de esgotamento sanitário,
água em áreas urbanas e eletrificação teriam exigido quase R$ 2 bilhões.
As
inúmeras rubricas que a lei orçamentária de 2012 contempla demandam recursos
expressivos. Há imperiosa necessidade de manutenção do refinanciamento da
dívida pública mobiliária e de cuidados para com os encargos financeiros da
União, como condição mesma de manutenção de estabilidade institucional,
nacional e internacional.
Encargos
para com a Previdência Social, transferências para estados, Distrito Federal e
municípios, valores destinados aos vários ministérios (custeando respectivos
programas), bem como aos demais poderes, demandam captação enérgica de
recursos. O conceito de justiça fiscal, nesse contexto, a par de
qualificar-se pelas várias formulações conceituais de justiça na
tradição ocidental, deve, necessariamente, pautar-se também sobre reflexões
relativas ao tamanho e funções do Estado que se espera, numa sociedade democrática,
patrocinadora da inclusão social e da plena realização do ideário dos direitos
humanos.
Conceituar-se justiça
fiscal como mero tipo ideal weberiano, isolado da realidade que nos cerca,
sem referências aos custos da ação política social, pode ser, no limite, um
exagero de abstração teórica em desfavor da possibilidade de genuíno exercício
de engenharia institucional.
Arnaldo
Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor e mestre em Filosofia
do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Fonte:
Revista Consultor Jurídico, 19 de maio de 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário