Na maioria das vezes faço postagem no BLOG sobre notícias de
decisões dos tribunais pátrios, para que o leitor conheça o entendimento dos
nossos julgadores sobre a matéria.
Pois bem... hoje recebi um texto de um aluno sobre uma
questão sempre debatida nas aulas de Direito Empresarial III, em contratos
bancários, que é justamente o Depósito Bancário.
Ora, o entendimento da doutrina e jurisprudência é que o
Contrato de Depósito Bancário é diferente do Contrato de Depósito especificado
no CC, pois no Depósito Bancário transfere-se a propriedade do bem depositado
(dinheiro) ao Banco.
O texto do Dr. José Carlos Zanforlin é justamente
contestando essa teoria, trazendo argumento interessantes.
Deveras, o debate se torna engrandecedor com a posição do
autor.
Adianto que não é a posição defendida por mim, nem na doutrina e nem na jurisprudência, mas é interessante fomentar o debate sobre o tema, até mesmo para formarmos uma opinião.
Sendo assim, confiram o texto. Agradeço ao aluno José
Nunes Terceiro pela colaboração.
Forte abraço a todos,
Depósito bancário à vista não transfere propriedade ao banco
por José
Carlos Zanforlin, quarta-feira, 12 de junho de 2013
Crise bancária e moeda fracionária
A quebra do Banco Lehman Brothers em 2008 associou a palavra
"crise" ao sistema bancário americano e europeu; até agora, o último
capítulo dessa novela foi a perda sofrida pelos depositantes de Chipre em
meados de abril deste ano. E em que consiste uma crise bancária?
Para o que interessa à grande maioria dos correntistas, há
uma crise quando o banco em que se possui conta bancária não tem o dinheiro
necessário para satisfazer os direitos de saque de seus clientes. Uma corrida
bancária, iniciada por alguma notícia negativa sobre a saúde financeira de um
banco, também gera essa consequência. E como é possível a um banco não possuir
dinheiro suficiente para honrar os depósitos que se lhe fazem?
Simples: quando o banco empresta mais do que tem. Tal situação decorre da
antiquíssima prática da reserva fracionária, adotada pelos bancos. Esta
consiste pura e simplesmente na utilização, para novos empréstimos, de parte
dos depósitos que se lhe efetuam. Ou seja, parcela do que é depositado
representa o "depósito compulsório" em percentual fixado por bancos
centrais, segundo critérios por eles sabidos. O que excede do compulsório a
instituição é livre para emprestar. Isso quer dizer, sem rodeios, que o banco
lança mão do dinheiro de propriedade dos depositantes para realização de seu
objeto social, com vistas ao lucro. E aí vem a pergunta:podem os bancos, sendo
depositários à vista de moeda de seus clientes, lançar mão desses recursos,
como se fossem propriedade sua, para auferir lucros e alterar/influir no fluxo
da economia de um país?
O Instituto Ludwig von Mises Brasil (IMB) publicou inúmeras e elucidativas
matérias sobre reserva fracionária, compulsório e suas consequências;
recomenda-se, inclusive, a magnífica obra de Jesús Huerta de Soto, Moeda Crédito Bancário
e Ciclos Econômicos. Consequências da prática da reserva fracionária são
muito bem relatadas em interessante artigo do Leandro Roque [1], componente
dos quadros do IMB.
Garantia constitucional da propriedade
A questão da propriedade dos recursos depositados pelos
clientes em bancos não é absolutamente pacífica. Afinal, por ocasião do
depósito, a propriedade da moeda é ou não é transferida para o banco? É que se
não houver transferência, a utilização dos recursos depositados seria abusiva e
ilegal. Resposta a essa questão será dada com base no Direito Positivo
brasileiro, embora se possa adiantar que nosso Judiciário, igualmente com
fundamento no mesmo Direito Positivo, entende que no depósito bancário há transferência
de propriedade do dinheiro do cliente para o banco. Como se vê, opiniões
divergentes sob o mesmo pano de fundo.
Nossa Constituição é o fundamento de validade da ordem jurídica brasileira e já
no art. 1º, incisos III e IV, assegura implicitamente o direito de propriedade,
pois não se concebem dignidade da pessoa humana e valores da livre iniciativa
sem que haja direito de propriedade.[2] É no art. 5º e no inciso XXII
que a Constituição expressamente garante o direito de propriedade a todos os
brasileiros e estrangeiros residentes no País. Todavia, no inciso seguinte,
XXIII, é limitado esse direito, pois é estatuído que a propriedade atenderá a
sua função social (seja lá o que isso possa representar)[3]. Portanto, tendo-se em conta essas regras
constitucionais, a apropriação pelos bancos dos recursos lá depositados por
seus clientes tem de ser algo muito bem justificado, pois de outro modo, a
apropriação será indevida. A menos que recursos depositados em conta corrente
possuam alguma "função social", o que deverá ser muito bem explicada!
Vejamos se isso ocorre.
Os leitores deste IMB já estão familiarizados com expressões
como "interesse público", "função social", e outras,
denotativas de não se sabe o quê, referidas a algo que não pertence ou não diz
respeito a mim, nem a você, nem a ninguém, mas que, por razões quase metafísicas
possuem significado para os "iniciados". E tais expressões se
utilizam, principalmente, para limitar o direito individual em prol de um
místico direito coletivo, e justificar ação do poder público para essa
limitação. Assim, quando a Constituição refere que a propriedade atenderá a sua
função social, devemos, à falta de uma noção axiomática dessa tal função
social, procurar na legislação infraconstitucional o seu significado. Já
adianto, não vamos encontrá-lo. Esse é um enunciado vago, uma forma vazia que
molda aquilo que a mão que usa a forma quer moldar...
Contrato de empréstimo e de depósito
O Código Civil, que é uma lei infraconstitucional, regula
dois tipos de contratos que se relacionam com o tema aqui tratado: o contrato
de empréstimo e o de depósito. O contrato de empréstimo pode ser
de dois tipos: o de coisas não fungíveis denomina-se comodato (art.
579), e o de coisas fungíveis, mútuo (art. 586). Fungíveis são
as coisas móveis que se podem substituir por outras da mesma espécie, qualidade
e quantidade, e seu uso acarreta o consumo e destruição da coisa, como moeda,
açúcar, soja (art. 85). No comodato, o comodatário pode fazer uso da coisa
(carro, bicicleta, martelo), e tem de devolvê-la no prazo convencionado ou
quando requerido pelo comodante; no mútuo, o uso da coisa pelo mutuário,
implica sua destruição/consumo (óleo, açúcar, moeda), e a devolução da coisa se
dá por outra de mesma espécie, qualidade e quantidade, após decurso de prazo
fixado pelas partes, se outra forma não tiver sido contratada. Já o Depósito é
o contrato pelo qual o depositário recebe um bem móvel do depositante para
guardá-lo até que este o reclame de volta, se não houver sido pactuado prazo no
contrato.
Revisando esse ponto e referindo tudo a dinheiro, temos: o
empréstimo de dinheiro que obtemos no banco chama-se mútuo, e o dinheiro que lá
depositamos chama-se depósito. Esse depósito, todos sabemos, pode ser à vista,
em conta corrente, ou a prazo, a tempo certo, chamado aplicação.
Ocorre que há no Código Civil um dispositivo que se encontra
na raiz de toda essa confusão. Confusão essa oportunamente utilizada para
embasar e justificar a aparente transferência de propriedade do dinheiro
depositado para o banco. Esse dispositivo é o art. 645, que equipara o depósito
de coisas fungíveis ao mútuo: "O depósito de coisas fungíveis, em que o
depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e
quantidade, regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo". E o art.
587, que trata do mútuo, estatui que "Este empréstimo transfere o domínio
da coisa emprestada ao mutuário, por cuja conta correm todos os riscos dela
desde a tradição". Por causa desse dispositivo, quase toda a doutrina e
jurisprudência entendem que o depositante de dinheiro à vista perde a propriedade
de seus recursos para o banco.
Eis aí a suposta causa de todos os males. Suposta porque, bem lidos esses
dispositivos legais, jamais alguém pode concluir que uma pessoa, ao depositar
certa quantia num banco, em depósito à vista, esteja transferindo o domínio, a
propriedade desse dinheiro para o banqueiro! Uma consequência tão importante
assim deveria estar expressa no contrato e dela estar ciente o depositante.
Fazer depósito à vista não é o mesmo que fazer uma aplicação por tempo certo,
embora ambas contemplem um ato inicial de depósito. A primeira operação não nos
rende juros, a segunda sim. Para que o depósito a prazo renda juros é
necessário que o banco "trabalhe" esse dinheiro; por isso ele tem de
apropriar-se desses recursos pelo prazo fixado.
É por essa razão que a lei equipara o depósito de coisa fungível (os depósitos
a prazo) ao mútuo (o dinheiro emprestado pelo banco), que é o empréstimo de
coisa fungível. Exemplo de depósito de coisa fungível é o de soja, milho,
feijão nos armazéns e silos: os produtos lá depositados misturam-se aos demais.
O dono do silo ou armazém tem o direito de retirar do todo a parte reclamada
por algum depositante, daí a transferência de propriedade, meramente funcional.
Então, o depósito que a lei equipara ao mútuo não pode ser outro que o depósito
a prazo e não o depósito à vista. Esse tem de estar a todo tempo disponível
para que o depositante possa sacá-lo. TODOS os depositantes e todo o
saldo, se for o caso, entenda-se bem! Sem reserva fracionária a corrida bancária
é inofensiva para bancos criteriosos, e todos os depositantes à vista poderiam
sacar de uma vez seus depósitos.
O que diferencia os negócios jurídicos uns dos outros é justamente o motivo ou
causa de sua prática, isto é, a razão que leva alguém a realizar um negócio
regulado pelo Direito. Se o motivo ou causa de sua realização for ilícito,
então o negócio será nulo (art. 166, III, do CC) [4]. É claro que a razão determinante daquele
que faz um depósito à vista não é a mesma do que faz um depósito a prazo. Quem
deposita dinheiro no banco quer apenas guardá-lo; quem aplica, transfere a
propriedade para que o banco obtenha-lhe o rendimento pactuado. A transferência
de propriedade, assim, deveria ser, no caso do depósito à vista, constitutiva
do próprio depósito, o que obviamente não é. Logo, o motivo que leva o banco a
apropriar-se dos recursos depositados à vista é inexistente no pacto (ainda que
sumário) do depósito.
Por isso, insista-se que a equiparação legal entre depósito de coisa fungível e
mútuo somente é possível entre depósito a prazo (que transfere a propriedade
dos recursos para o banco) e mútuo/empréstimo (que transfere a propriedade dos
recursos do banco para o cliente). Sem a transferência de propriedade no
depósito a prazo (do cliente para o banco) e no empréstimo que tomamos (do
banco para nós), a utilização do dinheiro seria ilícita, pois ninguém pode
dispor do que não lhe pertence.
Bancos recebem depósitos e emprestam
A própria lei do sistema bancário (Lei nº 4.595/64), no art.
17 [5], distingue as duas atividades básicas
praticadas pelas instituições financeiras: (i) uma é a coleta, intermediação ou
aplicação de recursos próprios ou de terceiros, e (ii) outra é a custódia de
valor de propriedade de terceiros. Em outras palavras, os bancos intermedeiam
ou aplicam recursos e custodiam (recebem em depósito) recursos de terceiros.
Para a primeira atividade, a propriedade dos recursos recebidos presume-se
transferida ao banco (mesmo no caso de recursos de terceiros), pois só assim
podem intermediá-los ou aplicá-los. Para a segunda (custodiar, que é o mesmo
que receber para depósito) a transferência não se presume, nem se opera.
Pode-se constatar, pelo que já foi dito até agora, que nem a Constituição, nem
o Código Civil e nem a Lei 4.595/64 estabelecem "função social" para
a propriedade dos recursos dos cidadãos. Portanto, essa propriedade é plena e
não condicionada, o que impede qualquer inferência de que ao fazermos um
depósito à vista num banco estamos transferindo-lhe a propriedade desses
recursos. E sem transferência de propriedade no depósito à vista, os bancos não
poderiam emprestar os recursos lá depositados. Cai por terra todo o alicerce da
reserva fracionária. E, com ela, a criação de moeda a partir do nada, a geração
de inflação pelo Estado e a vassalagem do cidadão.
Esse ponto deve ser realçado: a transferência da propriedade do dinheiro
depositado à vista é condição sine qua non para a prática da criação
de crédito bancário, expansão do crédito e das consequências negativas daí
decorrentes. Sem transferência de propriedade não há sistema de reserva
fracionária. Ou, de outra forma, a obrigação de manterem os bancos 100% de
reserva dos depósitos à vista, impede a criação de moeda por reserva
fracionária.
Contradição do judiciário
O Judiciário entende que aquele dispositivo do Código Civil
(art. 645) se aplica tanto a depósitos à vista quanto a prazo, e por isso
estabelece que a propriedade do dinheiro depositado à vista também se transmite
ao banco. Curiosamente, entretanto, ele se contradiz quando determina a penhora
de recursos detidos pelo devedor em sua conta corrente. Para aqueles que são
advogados, é curial a ferramenta utilizada em execução, chamada BACENJUR, pela
qual o juiz determina ao banco a penhora de depósito bancário do devedor. Ora,
a contradição consiste, precisamente, em penhorar-se (na concepção do
Judiciário) recurso do banco e não do cliente/devedor executado. Se o
Judiciário entende que o depositante perde para o banco a propriedade de seus
recursos depositados à vista, como é possível a penhora? Não é possível, claro;
verifica-se aí a fluidez de conceitos. A penhora somente é possível se
entendermos que o depositante não perde a propriedade de seus recursos.
Simplificação mutiladora
O raciocínio que se desenvolveu aqui distingue depósitos à
vista e a prazo, em harmonia com o art. 17 da Lei nº 4.595/64. E conclui que a
transferência de propriedade, decorrente do art. 645 do CC, somente se dá nos
depósitos a prazo.
Diante dessa constatação, indaga-se: por que ainda persiste
na doutrina e no Judiciário o entendimento de que no depósito à vista há
transferência de propriedade do dinheiro depositado? Duas razões básicas podem
ser enunciadas. Uma, decorre do inegável poder detido pelos bancos perante as
forças que movimentam as regras da "democracia", na elaboração de
leis que os favoreçam. Outra, é que o pensamento humano tende a evitar a
complexidade e busca atingir o conhecimento pelo caminho da simplicidade.
O
simples, no caso da transferência de propriedade, é não se diferenciarem
depósitos à vista de depósitos a prazo para incidência do disposto naquele art.
645 do Código Civil. Tal simplificação quase sempre mutila a compreensão da
realidade. Edgar Morin refere-se "a um modo mutilador de organização
do conhecimento, incapaz de reconhecer e de apreender a complexidade do real." [6]. No caso, a
"complexidade do real" consiste na diferença entre os dois tipos de
depósito. Em não se perceber a dicotomia da atividade bancária apontada na
letra do art. 17 da Lei nº 4.595/64, entre depósitos à vista e depósitos a
prazo.
A obrigação de os bancos possuírem, sempre, os recursos depositados à vista
para saque de seus clientes, não deve ser resultado de cálculo estatístico,
operado pelo banqueiro a partir de indução sobre o montante médio deixado pelos
depositantes em sua conta. A simplificação aqui é letal a ponto de fazer ruir
todo o conceito jurídico sobre o depósito monetário e permitir absurda
justaposição conceitual entre depositante e mutuário, este, sim, proprietário
do montante que lhe foi mutuado pelo prazo do contrato. E possibilitar ao
Estado um poder que a Constituição não lhe dá: manipular a moeda e avassalar o
cidadão.
[1] "O sistema bancário brasileiro e
seus detalhes quase nunca mencionados", inhttp://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1387,
o qual sintetiza e faz referência a vários outros, seguidores da Escola
Austríaca de Economia, que bem descrevem o tipo de relacionamento mencionado
neste item do trabalho.
[2] Art. 1º A República Federativa do
Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
[3] Art. 5º Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
[4] Art. 166. É nulo o negócio jurídico
quando:
III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for
ilícito;
[5] Art. 17. Consideram-se instituições
financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas
públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a
coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de
terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de
propriedade de terceiros.
[6] Edgar Morin, in Introdução ao
Pensamento Complexo, ed. Sulina, 4ª ed., pág. 10
José
Carlos Zanforlin é advogado e estudioso da Escola Austríaca de
economia.
Texto publicado originalmente no INSTITUTO MISES:
Nenhum comentário:
Postar um comentário